27.7.07

JOÃO

Apesar de estar a menos de três quilômetros do centro de São Paulo, eu nunca havia visto aquela igreja e decidi fotografá-la. Na rua com pouco trânsito, muito me chamou a atenção o homem que alimentava pombos sob a sombra de uma árvore: estatura média, corpo magro, roupas gastas, saco plástico na cabeça fazendo as vezes de chapéu; por certo um morador de rua. Aproximei-me e puxei conversa.


Qual é o seu nome?
João.

V&I: Eu estava vendo você dar de comer para os pombos.
João: Sempre que eu posso, eu dou alguma coisinha para eles: sementes, pedacinhos de pão...

V&I: Eles já conhecem você e chegam perto.
João: É, eles já me conhecem.

V&I: De onde você é, João?
João: Sou alagoano. Sou de Ana Dias.

V&I: Está há muito tempo em São Paulo?
João: Estou há cinqüenta e um anos!

V&I: Com quantos anos você está?

João: Estou com sessenta e nove. E olha que já tentaram me queimar três vezes.

V&I: Três vezes?
João: É. Uma com tiro. Bateram em mim duas vezes. Também tive uma veia na perna que estourou, mas eu escapei.

V&I: Você parece ter menos que sessenta e nove. Você tem o corpo forte.
João: É que eu lutava boxe. Eu ainda faço os meus treinos todos os dias.

V&I: Você lutava boxe?
João: Lutava. Eu era médio-ligeiro.

V&I: E você lutou muito tempo?
João: Lutei até os trinta anos.

V&I: Quantas lutas você ganhou?
João: Ah, ganhei muitas, mas o número eu não sei. Só vendo na federação pra saber.

V&I: E quem é o melhor boxeador que você já viu?
João: Éder Jofre. Ele era um gênio. E olha que são poucos os gênios [do boxe].

V&I: Por exemplo, o Muhammad Ali, Cassius Clay?
João: Não, o Cassius Clay, não.

V&I: E por que você parou de lutar?
João: Eu parei de lutar porque senti a necessidade de estudar a espiritualidade. Eu estudei muito. Nessa época, eu parei de lutar e fui ser vendedor.

V&I: E o que você vendia?
João: Eu trabalhava na feira, vendia frutas nacionais e importadas. Fiquei mais de vinte anos na feira.

V&I: Você casou, teve filhos?
João: Não casei e nem tive filhos. Eu fiquei esperando aparecer alguma mulher decente... Difícil isso.

V&I: Não casou, mas namorou bastante, não é?
João: Ah! Eu namorei bastante. Mas eu nunca casei porque sempre tive muita proteção [espiritual]. Tinha mulher que era aproveitadora. Tentaram me amarrar três vezes, magia negra. Por isso que eu não casei: porque tenho muita proteção.

V&I: E hoje, o que você faz?
João: Eu durmo nessa casa de convivência [aponta para um casa, alguns metros adiante]. Na casa eu trabalho na horta, almoço quase todos os dias, e também estudo. Eu já estou na quarta série.

V&I: E você gosta de ler?
João: Não, eu não gosto. Eu até saí de Alagoas porque não gostava de estudar. Meu pai pegou uma daquelas espingardas de dois canos e me pôs pra fora de casa.

V&I: A sua família ficou toda em Alagoas?
João: Éramos onze irmãos nascidos vivos... Meu pai era agricultor e trabalhava com comércio na cidade. Mas tinha muita terra: plantava mandioca, cana, abóbora... Com dezoito anos eu fui para São Paulo. Nunca mais soube deles.


Já havíamos conversado por mais de vinte minutos quando João disse que precisava ir, pois tinha horário a cumprir na casa de convivência. Como havia reclamado de uma dorzinha de cabeça, ofereci uma aspirina que eu trazia no carro; ele recusou, dizendo que ficaria bom depois que mascasse fumo e fizesse uma oração. Insisti em minha oferta e perguntei se ele tinha certeza; ele agradeceu e mais uma vez recusou, alegando que “remédios queimam os músculos”. Quem sou eu para discutir ante os sessenta e nove anos de João?

3.7.07

MARCOS

A noite nem era das mais frias e eu estava fazendo fotos no Centro de São Paulo. Já passava das onze, um horário em que não se vê turistas no Pátio do Colégio, mas apenas moradores de rua. Foi então que conheci Marcos.

Qual é o seu nome?
Marcos.

V&I: Pelo seu sotaque, você é do sul.
Marcos: Sou gaúcho.

V&I: O que você está fazendo nesta noite de quinta-feira, aqui no Pátio do Colégio?
Marcos: Eu sou um missionário de rua, eu trabalho na evangelização de moradores de rua. Eu também encaminho esses moradores para nossas casas de acolhida, onde oferecemos toda a assistência que eles precisam, tanto médica quanto espiritual, assim como em relação a outras coisas como emprego e roupas.

V&I: Atividades filantrópicas.
Marcos: Isso mesmo, o nosso trabalho é um trabalho filantrópico. A gente não tem recursos, a gente conta com a providência de Deus.

V&I: Para qual entidade e há quanto tempo você faz esse trabalho?
Marcos: Para a Missão Belém. Eu sou consagrado há três anos.

V&I: Explica para mim: o que significa “ser consagrado”?
Marcos: Ser consagrado? Significa que eu dedico minha vida a trabalhar para Deus.

V&I: Você é leigo ou tem formação teológica?
Marcos: Eu estou fazendo teologia, sexto semestre. Em dezembro eu pretendo começar meu noviciado e me tornar seminarista.

V&I: Vai se tornar padre?
Marcos: Não, vou me tornar frei, pois eu sou franciscano.

V&I: Qual a diferença de um padre e de um frei?
Marcos: O estudo do frei é diferente do estudo para o sacerdócio. Mas a primeira coisa que nós, franciscanos, abandonamos, são os bens materiais. Temos voto de pobreza. Um franciscano não tem mais de duas calças e duas camisas. Nós vivemos mais para o irmão do que para nós mesmos.

V&I: Qual a estrutura da Missão?
Marcos: Nós somos trinta missionários, dois padres e duas freiras.

V&I: Quantas pessoas são atendidas por esse projeto?
Marcos: Em São Paulo nós temos dezesseis casas, desde Bragança [Paulista] até Rio Grande da Serra, com um total de seiscentos irmãos acolhidos.

V&I: Você passa ao dia todo se dedicando a esse trabalho?
Marcos: O dia inteiro. Estou dormindo na rua há dez dias. É difícil, é preciso ter muita força de vontade. Hoje eu tinha dinheiro para almoçar, mas tinha um irmão para levar até a comunidade. Eu não almocei, eu levei o irmão. Às vezes a gente tem que renunciar às coisas em prol de um irmão.

V&I: Parabéns pelo trabalho, meus votos de sucesso.
Marcos: Obrigado.

V&I: E se algum leitor quiser conhecer esse trabalho?
Marcos: Quem quiser pode nos visitar. Estamos na rua Nélson Cruz 10, ao lado da Febem do Tatuapé.


Marcos se despediu e saiu na direção de um grupo de moradores de rua. Antes, pedi para fotografá-lo; gentil, mas firmemente, alegou que não podia se deixar fotografar. Por isso, excepcionalmente, as tradicionais fotos do entrevistado foram substituídas por esta foto que fiz no Pátio do Colégio em 2006.

Em tempo, uma curiosidade: achei um sítio bílingüe (italiano e português) da Missão Belém. A página inclui umas poucas fotos (clique aqui para ver).