Eu estava fotografando o São Vito quando conheci os entrevistados de hoje, Edivandro e Gabriel. Antes da transcrição de nossa prosa, gostaria de falar sobre o São Vito.
Conhecido como “treme-treme" , o Edifício São Vito fica no centro de São Paulo, quase incrustado no Parque Dom Pedro. Ladeado por movimentados viadutos e pelo fétido rio Tamanduateí, o prédio fica em área das mais decadentes, em frente ao Mercado Municipal. Entregue em 1959, tem 624 quitinetes distribuídos em 26 andares residenciais. Mal conservado, autêntica favela vertical, foi esvaziado para reforma pela prefeitura em 2004. Na ocasião, abrigava 1200 pessoas.
Desde então, São Paulo teve três prefeitos – Marta Suplicy, José Serra e Gilberto Kassab – e o São Vito continua abandonado, fantasmagórico e sem revitalização. Em 2007, as famílias perderam a bolsa-aluguel e anunciou-se um novo plano: a prefeitura pretende demolir o edifício, e também o vizinho Edifício Mercúrio (24 andares, 1000 moradores) para a implantação de uma esplanada. Ao que parece, inexiste qualquer programa habitacional para aos antigos moradores dos edifícios.
Apresentado o São Vito, apresento agora a vocês Gabriel (sem camiseta) e Edivandro (com camiseta).
Quais os seus nomes?
Edivandro... Gabriel.
V&I: Quantos anos vocês têm?
Edivandro: Dez.
Gabriel: Dez.
V&I: Vocês estudam? Estão em que ano?
Edivandro e Gabriel: Quarto.
V&I: O que vocês querem ser quando crescerem?
Gabriel: Eu quero ser advogado.
Edivandro: Jogador de futebol.
V&I: Você joga bem, Edivandro?
Edivandro: Jogo. Sou atacante.
V&I: Gabriel, por que você quer ser advogado?
Gabriel: Poque eu quero ajudar as pessoas.
V&I: Qual de vocês morava no São Vito?
Gabriel: Eu. O treme-treme... [Apelido do edifício.]
V&I: Você morou até fecharem o prédio?
Gabriel: Eu morei lá desde 1999 até fechar. Aí prefeitura ficou pagando um apartamento. Eles falaram que iam reformar o treme-treme todinho e depois dar a casa sem pagar.
V&I: Não reformaram o prédio e depois a prefeitura parou de pagar o aluguel.
Gabriel: Foi.
V&I: Vocês não devem gostar nem da Marta, nem do Serra e nem do Kassab.
Gabriel: Não.
Edivandro: Até no Mercadão estão fechando os boxes onde a gente trabalha.
V&I: Vocês ajudam seus pais com o trabalho?
Edivandro e Gabriel: É.
V&I: Seus pais trabalham no Mercado.
Gabriel: É, trabalham.
V&I: Quantos apartamentos o prédio tinha?
Gabriel: Espera aí, eu sei.
V&I: Quantos andares?
Gabriel: Vinte e quatro. [Na verdade, vinte e seis]
V&I: Quantos apartamentos por andar?
Gabriel: Quinze. [Na verdade, vinte e quatro.]
V&I: Então, 360 apartamentos. [Errado, são 624.] Enorme. E falam que vão demolir, não é?
Gabriel: Se demolirem, vão demolir também o Mercúrio.
V&I: Vocês moram no Mercúrio?
Gabriel: Não, naquele prédio ali. [Apontam para um prédio de uns cinco andares, separado do Mercúrio por uma rua estreita.]
V&I: Você gosta mais de onde você mora hoje?
Gabriel: Eu gosto mais de onde moro hoje. No treme-treme tinha muito ladrão, muito nóia [gíria para viciado em crack], jogavam lixo nas escadas. Tinha homem se beijando na escadaria...
V&I: Homem com homem?
Gabriel: É. Traveco também. Tinha também muito cara que fumava maconha.
Edivandro: Mas a polícia pegou também.
Gabriel: A polícia pegou foi um tiroteio, vixe. Matou um monte.
V&I: Isso foi quando foram esvaziar o prédio?
Edivandro: Foi.
Gabriel: Acertou no meu tio, aqui. [Aponta para o braço.]
V&I: Bala perdida?
Gabriel: É. Mas depois, quando teve o tiroteio, quase todo mundo desceu. Só ficaram os traficantes. Subindo lá não tinha água...
Edivandro: Jogaram sofá.
Gabriel: Fizeram uma fogueira, queimaram colchão, sofá...
Edivandro: Jogaram lá de cima pra baixo: pá!
V&I: Onde o sofá caiu?
Edivandro: Ali.
Gabriel: No meio da rua. E já morreu cara aí se jogando.
Edivandro: Se jogou do terceiro andar.
Gabriel:Até podia sobreviver, mas pegou numa quina e morreu.
Edivandro: Estourou as costelas todinhas.
V&I: O que vocês esperam do futuro?
Edivandro: Um futuro melhor.
Gabriel: Honestidade, paz, amor.
V&I: O que você acham do Brasil?
Gabriel: País bom pra viver.
V&I: As coisas estão melhorando?
Gabriel: Não, não estão.
Edivandro: Com esses prefeitos, também...
V&I: Gostam do Lula?
Gabriel: Do Lula eu gosto um pouquinho. Agora, o Serra, o Kassab, tudo ladrão. O Lula tinha roubado não sei quanto do governo. Agora, ele está melhorando.
Fiz então as fotos dos educadíssimos e simpáticos meninos: eles largaram suas bicicletas no chão e posaram para mim. Anotei os endereços e ainda nesta semana envio as fotos pelo correio.
Quando me despedi, lembrei da canção do Caetano dedicada à Sampa:
Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Mais uma vez a história se repete: sob o pretexto da recuperação urbanística de uma região, removem-se os pobres para longe e promove-se a especulação imobiliária em favorecimento de uns poucos. Por que não recuperar os prédios localizados em frente ao mercadão e destiná-los para programas de habitação popular?
De todo modo, ao menos por enquanto o São Vito continua em pé. Em ruínas, mas... imponente.
20.8.07
27.7.07
JOÃO
Apesar de estar a menos de três quilômetros do centro de São Paulo, eu nunca havia visto aquela igreja e decidi fotografá-la. Na rua com pouco trânsito, muito me chamou a atenção o homem que alimentava pombos sob a sombra de uma árvore: estatura média, corpo magro, roupas gastas, saco plástico na cabeça fazendo as vezes de chapéu; por certo um morador de rua. Aproximei-me e puxei conversa.
Qual é o seu nome?
João.
V&I: Eu estava vendo você dar de comer para os pombos.
João: Sempre que eu posso, eu dou alguma coisinha para eles: sementes, pedacinhos de pão...
V&I: Eles já conhecem você e chegam perto.
João: É, eles já me conhecem.
V&I: De onde você é, João?
João: Sou alagoano. Sou de Ana Dias.
V&I: Está há muito tempo em São Paulo?
João: Estou há cinqüenta e um anos!
V&I: Com quantos anos você está?
João: Estou com sessenta e nove. E olha que já tentaram me queimar três vezes.
V&I: Três vezes?
João: É. Uma com tiro. Bateram em mim duas vezes. Também tive uma veia na perna que estourou, mas eu escapei.
V&I: Você parece ter menos que sessenta e nove. Você tem o corpo forte.
João: É que eu lutava boxe. Eu ainda faço os meus treinos todos os dias.
V&I: Você lutava boxe?
João: Lutava. Eu era médio-ligeiro.
V&I: E você lutou muito tempo?
João: Lutei até os trinta anos.
V&I: Quantas lutas você ganhou?
João: Ah, ganhei muitas, mas o número eu não sei. Só vendo na federação pra saber.
V&I: E quem é o melhor boxeador que você já viu?
João: Éder Jofre. Ele era um gênio. E olha que são poucos os gênios [do boxe].
V&I: Por exemplo, o Muhammad Ali, Cassius Clay?
João: Não, o Cassius Clay, não.
V&I: E por que você parou de lutar?
João: Eu parei de lutar porque senti a necessidade de estudar a espiritualidade. Eu estudei muito. Nessa época, eu parei de lutar e fui ser vendedor.
V&I: E o que você vendia?
João: Eu trabalhava na feira, vendia frutas nacionais e importadas. Fiquei mais de vinte anos na feira.
V&I: Você casou, teve filhos?
João: Não casei e nem tive filhos. Eu fiquei esperando aparecer alguma mulher decente... Difícil isso.
V&I: Não casou, mas namorou bastante, não é?
João: Ah! Eu namorei bastante. Mas eu nunca casei porque sempre tive muita proteção [espiritual]. Tinha mulher que era aproveitadora. Tentaram me amarrar três vezes, magia negra. Por isso que eu não casei: porque tenho muita proteção.
V&I: E hoje, o que você faz?
João: Eu durmo nessa casa de convivência [aponta para um casa, alguns metros adiante]. Na casa eu trabalho na horta, almoço quase todos os dias, e também estudo. Eu já estou na quarta série.
V&I: E você gosta de ler?
João: Não, eu não gosto. Eu até saí de Alagoas porque não gostava de estudar. Meu pai pegou uma daquelas espingardas de dois canos e me pôs pra fora de casa.
V&I: A sua família ficou toda em Alagoas?
João: Éramos onze irmãos nascidos vivos... Meu pai era agricultor e trabalhava com comércio na cidade. Mas tinha muita terra: plantava mandioca, cana, abóbora... Com dezoito anos eu fui para São Paulo. Nunca mais soube deles.
Já havíamos conversado por mais de vinte minutos quando João disse que precisava ir, pois tinha horário a cumprir na casa de convivência. Como havia reclamado de uma dorzinha de cabeça, ofereci uma aspirina que eu trazia no carro; ele recusou, dizendo que ficaria bom depois que mascasse fumo e fizesse uma oração. Insisti em minha oferta e perguntei se ele tinha certeza; ele agradeceu e mais uma vez recusou, alegando que “remédios queimam os músculos”. Quem sou eu para discutir ante os sessenta e nove anos de João?
Qual é o seu nome?
João.
V&I: Eu estava vendo você dar de comer para os pombos.
João: Sempre que eu posso, eu dou alguma coisinha para eles: sementes, pedacinhos de pão...
V&I: Eles já conhecem você e chegam perto.
João: É, eles já me conhecem.
V&I: De onde você é, João?
João: Sou alagoano. Sou de Ana Dias.
V&I: Está há muito tempo em São Paulo?
João: Estou há cinqüenta e um anos!
V&I: Com quantos anos você está?
João: Estou com sessenta e nove. E olha que já tentaram me queimar três vezes.
V&I: Três vezes?
João: É. Uma com tiro. Bateram em mim duas vezes. Também tive uma veia na perna que estourou, mas eu escapei.
V&I: Você parece ter menos que sessenta e nove. Você tem o corpo forte.
João: É que eu lutava boxe. Eu ainda faço os meus treinos todos os dias.
V&I: Você lutava boxe?
João: Lutava. Eu era médio-ligeiro.
V&I: E você lutou muito tempo?
João: Lutei até os trinta anos.
V&I: Quantas lutas você ganhou?
João: Ah, ganhei muitas, mas o número eu não sei. Só vendo na federação pra saber.
V&I: E quem é o melhor boxeador que você já viu?
João: Éder Jofre. Ele era um gênio. E olha que são poucos os gênios [do boxe].
V&I: Por exemplo, o Muhammad Ali, Cassius Clay?
João: Não, o Cassius Clay, não.
V&I: E por que você parou de lutar?
João: Eu parei de lutar porque senti a necessidade de estudar a espiritualidade. Eu estudei muito. Nessa época, eu parei de lutar e fui ser vendedor.
V&I: E o que você vendia?
João: Eu trabalhava na feira, vendia frutas nacionais e importadas. Fiquei mais de vinte anos na feira.
V&I: Você casou, teve filhos?
João: Não casei e nem tive filhos. Eu fiquei esperando aparecer alguma mulher decente... Difícil isso.
V&I: Não casou, mas namorou bastante, não é?
João: Ah! Eu namorei bastante. Mas eu nunca casei porque sempre tive muita proteção [espiritual]. Tinha mulher que era aproveitadora. Tentaram me amarrar três vezes, magia negra. Por isso que eu não casei: porque tenho muita proteção.
V&I: E hoje, o que você faz?
João: Eu durmo nessa casa de convivência [aponta para um casa, alguns metros adiante]. Na casa eu trabalho na horta, almoço quase todos os dias, e também estudo. Eu já estou na quarta série.
V&I: E você gosta de ler?
João: Não, eu não gosto. Eu até saí de Alagoas porque não gostava de estudar. Meu pai pegou uma daquelas espingardas de dois canos e me pôs pra fora de casa.
V&I: A sua família ficou toda em Alagoas?
João: Éramos onze irmãos nascidos vivos... Meu pai era agricultor e trabalhava com comércio na cidade. Mas tinha muita terra: plantava mandioca, cana, abóbora... Com dezoito anos eu fui para São Paulo. Nunca mais soube deles.
Já havíamos conversado por mais de vinte minutos quando João disse que precisava ir, pois tinha horário a cumprir na casa de convivência. Como havia reclamado de uma dorzinha de cabeça, ofereci uma aspirina que eu trazia no carro; ele recusou, dizendo que ficaria bom depois que mascasse fumo e fizesse uma oração. Insisti em minha oferta e perguntei se ele tinha certeza; ele agradeceu e mais uma vez recusou, alegando que “remédios queimam os músculos”. Quem sou eu para discutir ante os sessenta e nove anos de João?
3.7.07
MARCOS
A noite nem era das mais frias e eu estava fazendo fotos no Centro de São Paulo. Já passava das onze, um horário em que não se vê turistas no Pátio do Colégio, mas apenas moradores de rua. Foi então que conheci Marcos.
Qual é o seu nome?
Marcos.
V&I: Pelo seu sotaque, você é do sul.
Marcos: Sou gaúcho.
V&I: O que você está fazendo nesta noite de quinta-feira, aqui no Pátio do Colégio?
Marcos: Eu sou um missionário de rua, eu trabalho na evangelização de moradores de rua. Eu também encaminho esses moradores para nossas casas de acolhida, onde oferecemos toda a assistência que eles precisam, tanto médica quanto espiritual, assim como em relação a outras coisas como emprego e roupas.
V&I: Atividades filantrópicas.
Marcos: Isso mesmo, o nosso trabalho é um trabalho filantrópico. A gente não tem recursos, a gente conta com a providência de Deus.
V&I: Para qual entidade e há quanto tempo você faz esse trabalho?
Marcos: Para a Missão Belém. Eu sou consagrado há três anos.
V&I: Explica para mim: o que significa “ser consagrado”?
Marcos: Ser consagrado? Significa que eu dedico minha vida a trabalhar para Deus.
V&I: Você é leigo ou tem formação teológica?
Marcos: Eu estou fazendo teologia, sexto semestre. Em dezembro eu pretendo começar meu noviciado e me tornar seminarista.
V&I: Vai se tornar padre?
Marcos: Não, vou me tornar frei, pois eu sou franciscano.
V&I: Qual a diferença de um padre e de um frei?
Marcos: O estudo do frei é diferente do estudo para o sacerdócio. Mas a primeira coisa que nós, franciscanos, abandonamos, são os bens materiais. Temos voto de pobreza. Um franciscano não tem mais de duas calças e duas camisas. Nós vivemos mais para o irmão do que para nós mesmos.
V&I: Qual a estrutura da Missão?
Marcos: Nós somos trinta missionários, dois padres e duas freiras.
V&I: Quantas pessoas são atendidas por esse projeto?
Marcos: Em São Paulo nós temos dezesseis casas, desde Bragança [Paulista] até Rio Grande da Serra, com um total de seiscentos irmãos acolhidos.
V&I: Você passa ao dia todo se dedicando a esse trabalho?
Marcos: O dia inteiro. Estou dormindo na rua há dez dias. É difícil, é preciso ter muita força de vontade. Hoje eu tinha dinheiro para almoçar, mas tinha um irmão para levar até a comunidade. Eu não almocei, eu levei o irmão. Às vezes a gente tem que renunciar às coisas em prol de um irmão.
V&I: Parabéns pelo trabalho, meus votos de sucesso.
Marcos: Obrigado.
V&I: E se algum leitor quiser conhecer esse trabalho?
Marcos: Quem quiser pode nos visitar. Estamos na rua Nélson Cruz 10, ao lado da Febem do Tatuapé.
Marcos se despediu e saiu na direção de um grupo de moradores de rua. Antes, pedi para fotografá-lo; gentil, mas firmemente, alegou que não podia se deixar fotografar. Por isso, excepcionalmente, as tradicionais fotos do entrevistado foram substituídas por esta foto que fiz no Pátio do Colégio em 2006.
Em tempo, uma curiosidade: achei um sítio bílingüe (italiano e português) da Missão Belém. A página inclui umas poucas fotos (clique aqui para ver).
Qual é o seu nome?
Marcos.
V&I: Pelo seu sotaque, você é do sul.
Marcos: Sou gaúcho.
V&I: O que você está fazendo nesta noite de quinta-feira, aqui no Pátio do Colégio?
Marcos: Eu sou um missionário de rua, eu trabalho na evangelização de moradores de rua. Eu também encaminho esses moradores para nossas casas de acolhida, onde oferecemos toda a assistência que eles precisam, tanto médica quanto espiritual, assim como em relação a outras coisas como emprego e roupas.
V&I: Atividades filantrópicas.
Marcos: Isso mesmo, o nosso trabalho é um trabalho filantrópico. A gente não tem recursos, a gente conta com a providência de Deus.
V&I: Para qual entidade e há quanto tempo você faz esse trabalho?
Marcos: Para a Missão Belém. Eu sou consagrado há três anos.
V&I: Explica para mim: o que significa “ser consagrado”?
Marcos: Ser consagrado? Significa que eu dedico minha vida a trabalhar para Deus.
V&I: Você é leigo ou tem formação teológica?
Marcos: Eu estou fazendo teologia, sexto semestre. Em dezembro eu pretendo começar meu noviciado e me tornar seminarista.
V&I: Vai se tornar padre?
Marcos: Não, vou me tornar frei, pois eu sou franciscano.
V&I: Qual a diferença de um padre e de um frei?
Marcos: O estudo do frei é diferente do estudo para o sacerdócio. Mas a primeira coisa que nós, franciscanos, abandonamos, são os bens materiais. Temos voto de pobreza. Um franciscano não tem mais de duas calças e duas camisas. Nós vivemos mais para o irmão do que para nós mesmos.
V&I: Qual a estrutura da Missão?
Marcos: Nós somos trinta missionários, dois padres e duas freiras.
V&I: Quantas pessoas são atendidas por esse projeto?
Marcos: Em São Paulo nós temos dezesseis casas, desde Bragança [Paulista] até Rio Grande da Serra, com um total de seiscentos irmãos acolhidos.
V&I: Você passa ao dia todo se dedicando a esse trabalho?
Marcos: O dia inteiro. Estou dormindo na rua há dez dias. É difícil, é preciso ter muita força de vontade. Hoje eu tinha dinheiro para almoçar, mas tinha um irmão para levar até a comunidade. Eu não almocei, eu levei o irmão. Às vezes a gente tem que renunciar às coisas em prol de um irmão.
V&I: Parabéns pelo trabalho, meus votos de sucesso.
Marcos: Obrigado.
V&I: E se algum leitor quiser conhecer esse trabalho?
Marcos: Quem quiser pode nos visitar. Estamos na rua Nélson Cruz 10, ao lado da Febem do Tatuapé.
Marcos se despediu e saiu na direção de um grupo de moradores de rua. Antes, pedi para fotografá-lo; gentil, mas firmemente, alegou que não podia se deixar fotografar. Por isso, excepcionalmente, as tradicionais fotos do entrevistado foram substituídas por esta foto que fiz no Pátio do Colégio em 2006.
Em tempo, uma curiosidade: achei um sítio bílingüe (italiano e português) da Missão Belém. A página inclui umas poucas fotos (clique aqui para ver).
28.5.07
VERÔNICA
Após uma decadência que perdurou décadas, a rua do Comércio ostenta iluminação por lampiões estilizados, piso de paralelepípedos e tráfego de bondes. Graças aos incentivos fiscais oferecidos pela prefeitura de Santos, muitos dos velhos casarões foram restaurados e hoje são ocupados por comércio e serviços. Persistem ainda alguns pardieiros habitados por gente muito pobre, além de várias construções em ruínas. Foi nesse cenário em que a vi: apesar do frio e da atadura em um dos joelhos, dava passos rápidos, e o tempo inteiro cantarolava uma canção que eu não conhecia.
V&I: Que música você está cantando?
Ela: É um hino da Igreja Universal do Reino de Deus.
V&I: Você freqüenta essa igreja?
Ela: Não, a minha mãe que é de lá. Às vezes eu também vou. Você já foi lá?
V&I: Não, eu nunca fui.
Ela: Você devia ir. É legal!
V&I: Qual o seu nome?
Ela: Verônica.
V&I: O que você faz da vida?
Verônica: Eu sou casada, mas saí de casa. O meu marido me batia... Aí eu saí de casa com meu filho de oito meses.
V&I: E onde você está morando?
Verônica: Peguei vaga nesse hotel. [Aponta para um hotel decadente, a fachada despedaçada.]
V&I: Você trabalha?
Verônica: Não, agora eu estou parada.
V&I: E o que você fazia?
Verônica: Eu era encarregada de recicragem. [Sabe que falou errado e tenta consertar.] Re-ci-cra-gem... Não adianta, eu não consigo falar.
V&I: Tenta de novo, bem devagar: re-ci-cla-gem.
Verônica: Não, eu não consigo. Desde pequena, na escola...
V&I: Você é do interior?
Verônica: Não, sou daqui de Santos mesmo.
V&I: É que você tem um sotaque meio caipira... Não parece santista.
Verônica: Eu sou daqui. Só não consigo falar algumas palavras...
V&I: Você está procurando emprego?
Verônica: Estou, mas está difícil porque eu estudei pouco.
V&I: Até que série você estudou?
Verônica: Só até a quinta série. Por isso fica difícil conseguir trabalho.
V&I: O que o seu marido faz?
Verônica: Ele é frentista.
V&I: Por quanto tempo você ficou casada?
Verônica: Esse é meu segundo casamento. O primeiro durou quatro anos; esse, três anos. O problema é que ele bebe e depois quer bater... Quem não sabe beber não pode beber.
V&I: E você teve esse filho com ele.
Verônica: Isso, esse de oito meses. E tenho um outro do primeiro casamento, está com dezesseis anos.
V&I: Quantos anos você tem?
Verônica: Trinta, quase trinta e um.
V&I: Parece que tem menos. Você casou nova.
Verônica: É, casei nova.
V&I: E como você está se virando sem trabalho?
Verônica: Eu peço ajuda às pessoas. Hoje eu já consegui dinheiro para o leite em pó do Guilherme. [Mostra na mão um punhado de moedas e de notas amassadas.] Estou indo comprar. Preciso agora arrumar dinheiro pra vaga, vence amanhã.
V&I: Quanto custa a vaga?
Verônica: Doze reais por dia.
V&I: Quanto dura uma lata de leite?
Custa sete e oitenta e dura três dias. Eu misturo como maisena pra render mais.
V&I: Quantas mamadeiras por dia?
Verônica: [Parou fazer as contas antes de responder.] Nove.
V&I: Você não está mais amamentando?
Verônica: Tive que parar logo. Eu tive pneumonia...
V&I: Teve pneumonia e teve que parar por causa dos antibióticos.
Verônica: Isso mesmo.
Verônica parou de falar por um instante e olhou na direção da esquina. Por engano, pensou ter visto o bebê acompanhado do filho mais velho. Disse que precisava ir, pois ainda ia comprar leite para o Gilherme. Antes de me despedir, fiz menção ao futuro; Verônica, sorridente, respondeu que todos os dias precisava conseguir o dinheiro para dar de comer ao filho, e que até agora tem conseguido. Pedi para fotografá-la, fiz as fotos e nos despedimos. Quando ela saiu, não mais cantava, mas nem por isso parecia menos feliz do que antes de nossa conversa.
V&I: Que música você está cantando?
Ela: É um hino da Igreja Universal do Reino de Deus.
V&I: Você freqüenta essa igreja?
Ela: Não, a minha mãe que é de lá. Às vezes eu também vou. Você já foi lá?
V&I: Não, eu nunca fui.
Ela: Você devia ir. É legal!
V&I: Qual o seu nome?
Ela: Verônica.
V&I: O que você faz da vida?
Verônica: Eu sou casada, mas saí de casa. O meu marido me batia... Aí eu saí de casa com meu filho de oito meses.
V&I: E onde você está morando?
Verônica: Peguei vaga nesse hotel. [Aponta para um hotel decadente, a fachada despedaçada.]
V&I: Você trabalha?
Verônica: Não, agora eu estou parada.
V&I: E o que você fazia?
Verônica: Eu era encarregada de recicragem. [Sabe que falou errado e tenta consertar.] Re-ci-cra-gem... Não adianta, eu não consigo falar.
V&I: Tenta de novo, bem devagar: re-ci-cla-gem.
Verônica: Não, eu não consigo. Desde pequena, na escola...
V&I: Você é do interior?
Verônica: Não, sou daqui de Santos mesmo.
V&I: É que você tem um sotaque meio caipira... Não parece santista.
Verônica: Eu sou daqui. Só não consigo falar algumas palavras...
V&I: Você está procurando emprego?
Verônica: Estou, mas está difícil porque eu estudei pouco.
V&I: Até que série você estudou?
Verônica: Só até a quinta série. Por isso fica difícil conseguir trabalho.
V&I: O que o seu marido faz?
Verônica: Ele é frentista.
V&I: Por quanto tempo você ficou casada?
Verônica: Esse é meu segundo casamento. O primeiro durou quatro anos; esse, três anos. O problema é que ele bebe e depois quer bater... Quem não sabe beber não pode beber.
V&I: E você teve esse filho com ele.
Verônica: Isso, esse de oito meses. E tenho um outro do primeiro casamento, está com dezesseis anos.
V&I: Quantos anos você tem?
Verônica: Trinta, quase trinta e um.
V&I: Parece que tem menos. Você casou nova.
Verônica: É, casei nova.
V&I: E como você está se virando sem trabalho?
Verônica: Eu peço ajuda às pessoas. Hoje eu já consegui dinheiro para o leite em pó do Guilherme. [Mostra na mão um punhado de moedas e de notas amassadas.] Estou indo comprar. Preciso agora arrumar dinheiro pra vaga, vence amanhã.
V&I: Quanto custa a vaga?
Verônica: Doze reais por dia.
V&I: Quanto dura uma lata de leite?
Custa sete e oitenta e dura três dias. Eu misturo como maisena pra render mais.
V&I: Quantas mamadeiras por dia?
Verônica: [Parou fazer as contas antes de responder.] Nove.
V&I: Você não está mais amamentando?
Verônica: Tive que parar logo. Eu tive pneumonia...
V&I: Teve pneumonia e teve que parar por causa dos antibióticos.
Verônica: Isso mesmo.
Verônica parou de falar por um instante e olhou na direção da esquina. Por engano, pensou ter visto o bebê acompanhado do filho mais velho. Disse que precisava ir, pois ainda ia comprar leite para o Gilherme. Antes de me despedir, fiz menção ao futuro; Verônica, sorridente, respondeu que todos os dias precisava conseguir o dinheiro para dar de comer ao filho, e que até agora tem conseguido. Pedi para fotografá-la, fiz as fotos e nos despedimos. Quando ela saiu, não mais cantava, mas nem por isso parecia menos feliz do que antes de nossa conversa.
21.5.07
IVANA
As três mulheres desciam a avenida Brigadeiro Luís Antônio apressadas. A luz da tarde de domingo ressaltava o cuidado delas com as roupas, com a maquiagem, com os adereços. Abordei uma delas quando as outras duas já subiam as escadas do Cartola Club, um dos mais famosos salões de baile de São Paulo.
Qual é o seu nome?
Ivana.
V&I: Pelo visto, hoje é dia de festa. Você sempre sai para dançar?
Ivana: Sempre. Todos os domingos e todas as sextas-feiras, com elas [aponta escada acima].
V&I: Elas são amigas, parentes?
Ivana: Uma é minha filha, a outra é minha amiga.
V&I: Que ritmos você mais gosta de dançar?
Ivana: Adoro bolero, samba...
V&I: Você dança há muito tempo?
Ivana: Ah, já há uns vinte anos.
V&I: E como você aprendeu a dançar?
Ivana: Sozinha!
V&I: Mas como que se aprende a dançar sozinho?
Ivana: Os parceiros ensinam!
V&I: Você tem parceiro fixo?
Ivana: Não. A cada vez que a gente vem, dançamos com pessoas diferentes. Sempre tem gente nova.
V&I: Funciona à moda antiga? É o cavalheiro quem tira a dama para dançar?
Ivana: Exatamente. Ainda é assim.
V&I: Bolero é sua especialidade?
Ivana: Sim. E samba também.
V&I: Algum ritmo mais difícil de dançar, alguma coisa que você tentou e não conseguiu?
Ivana: Tango. [Faz uma pausa e parece suspirar.] Tango é uma arte...
O baile já tinha começado e mesmo da calçada onde eu me encontrava a música era audível. Não apenas minha interlocutora, mas também as pessoas que chegavam mostravam-se nitidamente apressadas, ansiosas por dançar; por isso, não me estiquei em mais perguntas. Pedi para fotografá-la; ela chamou a filha para as posar com ela e enfim Ivana pôde subir as escadas para entrar no baile. E eu, que sou completamente desconjuntado quando tento dançar, fiquei ali pensando que, inegavelmente, o tango é uma arte.
***
Esta foi a primeira entrevista que fiz baseada não no acaso de encontrar as pessoas nas ruas, mas sim em uma pauta pré-definida. A idéia de conversar com frequentadores dos salões de baile foi da Maray, do Che Caribe. Em breve, pretendo voltar ao Cartola Club no final do baile, um horário com dançarinos menos descansados e com mais tempo para o exercício da prosa.
Qual é o seu nome?
Ivana.
V&I: Pelo visto, hoje é dia de festa. Você sempre sai para dançar?
Ivana: Sempre. Todos os domingos e todas as sextas-feiras, com elas [aponta escada acima].
V&I: Elas são amigas, parentes?
Ivana: Uma é minha filha, a outra é minha amiga.
V&I: Que ritmos você mais gosta de dançar?
Ivana: Adoro bolero, samba...
V&I: Você dança há muito tempo?
Ivana: Ah, já há uns vinte anos.
V&I: E como você aprendeu a dançar?
Ivana: Sozinha!
V&I: Mas como que se aprende a dançar sozinho?
Ivana: Os parceiros ensinam!
V&I: Você tem parceiro fixo?
Ivana: Não. A cada vez que a gente vem, dançamos com pessoas diferentes. Sempre tem gente nova.
V&I: Funciona à moda antiga? É o cavalheiro quem tira a dama para dançar?
Ivana: Exatamente. Ainda é assim.
V&I: Bolero é sua especialidade?
Ivana: Sim. E samba também.
V&I: Algum ritmo mais difícil de dançar, alguma coisa que você tentou e não conseguiu?
Ivana: Tango. [Faz uma pausa e parece suspirar.] Tango é uma arte...
O baile já tinha começado e mesmo da calçada onde eu me encontrava a música era audível. Não apenas minha interlocutora, mas também as pessoas que chegavam mostravam-se nitidamente apressadas, ansiosas por dançar; por isso, não me estiquei em mais perguntas. Pedi para fotografá-la; ela chamou a filha para as posar com ela e enfim Ivana pôde subir as escadas para entrar no baile. E eu, que sou completamente desconjuntado quando tento dançar, fiquei ali pensando que, inegavelmente, o tango é uma arte.
***
Esta foi a primeira entrevista que fiz baseada não no acaso de encontrar as pessoas nas ruas, mas sim em uma pauta pré-definida. A idéia de conversar com frequentadores dos salões de baile foi da Maray, do Che Caribe. Em breve, pretendo voltar ao Cartola Club no final do baile, um horário com dançarinos menos descansados e com mais tempo para o exercício da prosa.
14.5.07
LUIZ CARLOS
Noite de domingo. Estava regulando a câmera para devolvê-la ao topo do tripé, instalado em uma iluminada rua do Centro de São Paulo. Olho para trás e a menos de três metros de distância vejo aquele homem: roupas muito gastas - calça de oncinha, camisa de veludo, jaqueta encardida - dispostos em camadas, à la Falcão; olhos protegidos por um estranho óculos no estilo homem-mosca; um notável mau cheiro (por certo um morador de rua sem muitas oportunidades para o banho). Ele parecia em transe enquanto olhava para o próprio reflexo no vidro espelhado de um carro estacionado, transe este interrompido pelo meu chamado.
Vida & Imagens: Ei, vem cá.
[Ele levantou os óculos e lentamente se aproximou de mim. Parou na minha frente, o mau cheiro ainda mais forte; só então notei que seus óculos eram, na verdade, um pedaço de lanterna de carro.]
V&I: Posso fotografar você?
[O homem nada falou, mas autorizou a foto com um gesto de cabeça e postou-se à minha frente.]
V&I: Qual é o seu nome?
Ele: Luiz Carlos de Oliveira, aventurado na galática, fazendo o Sol de Terra.
V&I: Luiz Carlos, posso entrevistar você?
[Desta vez, o gesto foi de negação. Luiz Carlos virou-se e saiu andando devagar, até sumir em meio à multidão.]
Horas depois, ao transcrever as raras palavras de Luiz Carlos, a dúvida: "fazendo o Sol de Terra" comporta vários sentidos. Acabei concluindo que, na frase, "Terra" é o planeta, e não a matéria, o barro. Pura filosofia, ainda que vinda de alguém com evidente perturbação mental.
Vida & Imagens: Ei, vem cá.
[Ele levantou os óculos e lentamente se aproximou de mim. Parou na minha frente, o mau cheiro ainda mais forte; só então notei que seus óculos eram, na verdade, um pedaço de lanterna de carro.]
V&I: Posso fotografar você?
[O homem nada falou, mas autorizou a foto com um gesto de cabeça e postou-se à minha frente.]
V&I: Qual é o seu nome?
Ele: Luiz Carlos de Oliveira, aventurado na galática, fazendo o Sol de Terra.
V&I: Luiz Carlos, posso entrevistar você?
[Desta vez, o gesto foi de negação. Luiz Carlos virou-se e saiu andando devagar, até sumir em meio à multidão.]
Horas depois, ao transcrever as raras palavras de Luiz Carlos, a dúvida: "fazendo o Sol de Terra" comporta vários sentidos. Acabei concluindo que, na frase, "Terra" é o planeta, e não a matéria, o barro. Pura filosofia, ainda que vinda de alguém com evidente perturbação mental.
24.4.07
SUELLEM
Conheci Suellem em fevereiro: fotografei-a enquanto desfilava seu corpo esguio por uma calçada do Centro de São Paulo. Há poucos dias reencontrei-a, desta vez para uma sessão de fotos no Pátio do Colégio e no Largo de São Bento. Apesar de nunca ter posado, mostrou uma aptidão inata para ficar em frente às lentes. Feitas as fotos, conversamos.
Qual é o seu nome?
Suellem.
V&I: Quantos anos você tem?
Suellem: Vinte e três.
V&I: Você é daqui de São Paulo?
Suellem: Sim, da Cidade Tiradentes.
V&I: Você trabalha, estuda?
Suellem: Eu já terminei os estudos. Tenho ensino médio completo e trabalho como operadora de telemarketing.
V&I: Trabalhar com telemarketing é difícil?
Suellem: É bom, dependendo do produto.
V&I: E com que produto você trabalha?
Suellem: Eu vendo cartões de crédito.
V&I: É difícil vender cartão de crédito?
Suellem: É difícil porque eu vendo pra quem já tem mais de quatro cartões. Como é esse é o perfil que eles colocaram para mim, isso dificulta as minhas vendas.
V&I: Quantas vendas você consegue num mês?
Suellem: Menos de trinta. Uma por dia, em média.
V&I: Com quantas pessoas você fala num dia?
Suellem: Trabalhando direto, mais de trezentas pessoas. Isso em seis horas.
V&I: As pessoas costumam ser educadas?
Suellem: Algumas pessoas são muito grossas, mas eu levo na esportiva. Não levo pro lado pessoal.
V&I: Mas não é todo mundo que consegue levar na esportiva, não é?
Suellem: Não. Tem gente que chora, fica com depressão... Acontece bastante.
V&I: Você tem uma meta pra atingir?
Suellem: Tenho. Dois cartões por dia.
V&I: Quantas pessoas trabalham com você?
Suellem: O call center é enorme, mais de trezentas pessoas. Na minha equipe são trinta e cinco pessoas. A minha firma presta serviço para várias outras.
V&I: Você já vendeu outros produtos?
Suellem: Cartão de crédito, bloqueador de celular e de linha...
V&I: Tem algum produto que seja melhor pra vender?
Suellem: Nenhum! [Começa a rir com gosto.]
V&I: Por quê?
Suellem: O que desanima nós, operadores, é que eles colocam clientes fora do perfil. Vamos supor, eu ligo pra você, mas você já é cliente de outro banco...
V&I: Nesse caso, vender o cartão é um desafio.
Suellem: Exatamente.
V&I: Já trabalhou com outra coisa que não telemarketing?
Suellem: Já trabalhei na casa de uma artista... Não posso revelar o nome. Eu fui contratada pra olhar o cachorrinho.
V&I: Por que você não pode falar quem era? Pediram pra você não comentar?
Suellem: Na época, sim. Medo de assalto. Conseguiram entrar até no apartamento da Fátima Bernardes, não é?
V&I: Com o que você gosta de trabalhar?
Suellem: O que eu gosto mesmo é de animais. Gostaria de trabalhar numa pet shop.
V&I: Você tem algum animal de estimação em casa?
Suellem: Não, minha mãe não deixa. A única coisa que ela deixa é peixe. Eu moro em apartamento.
V&I: Então você tem peixes de aquário.
Suellem: Tinha um... Ele morreu. Eu acho que ele bateu a cabeça numa pedra. [Começa a rir.] Ele morreu do nada!
V&I: Você tem namorado?
Suellem: Namorei por quase um ano. Terminei faz menos de um mês.
V&I: Pretende casar, ter filhos?
Suellem: Um dia, casar. Eu ainda sou muito nova. Quero ter dois filhos.
V&I: O que você espera do futuro?
Suellem: Eu quero pôr meu sonho em prática.
V&I: Qual é o seu sonho?
Suellem: Ser modelo. Mas não de sucesso.
V&I: Como assim? Quer ser modelo sem sucesso?
Suellem: Muita menina quer fazer muito sucesso, mas isso é uma ilusão. Eu só de desfilar numa passarela fico feliz, porque faço isso com amor.
V&I: Você já desfilou?
Suellem: Não. Eu já participei de um concurso, mas não ganhei.
V&I: Que concurso?
Suellem: "Bonequinha do Café", no meu bairro. É que antigamente umas moças trabalhavam no cafezal e eram muito exploradas. Aí fizeram essa homenagem. Agora vai ter um outro concurso: Miss Tiradentes.
V&I: Você gosta da Cidade Tiradentes?
Suellem: Adoro. Lá é a maior cohab [conjunto habitacional] da América Latina. Melhorou muito: tem banco, comércio, vão construir um shopping.
V&I: Lá tem muitos lugares para sair?
Suellem: Lugar pra sair não tem. Bar, só aqueles barzinhos de forró.
V&I: Você não gosta de forró?
Suellem: Não, odeio. Eu gosto de dançar black, samba e só.
V&I: E que mais você gosta de fazer?
Suellem: Eu gosto bastante de ler. Estou lendo “Pé no chão, cabeça nas estrelas”, não lembro o autor. [Trata-se de Lair Ribeiro, um dos papas da auto-ajuda.]
V&I: Algum livro marcante?
Suellem: “Você é o melhor de Deus”. É um livro que incentiva as pessoas. [O autor é o pregador evangélico norte-americano T.L. Osborn.]
V&I: Gosta de cinema?
Suellem: Gosto. Um filme que me marcou foi “Amor e basquete”. [No original, Love and basketball, direção de Gina Prince-Bythewood, 2000.]
V&I: Mudando de assunto, o que você acha do Brasil?
Suellem: É um país riquíssimo, tem seus defeitos - corrupção, essas coisas - mas é um lugar ótimo pra se viver. É o único lugar que não tem furacão, essas coisas.
V&I: Mas você acha que o Brasil tem jeito?
Suellem: Tem jeito. O maior culpado é o governo: muito imposto. Mas eu tenho um raciocínio meio particular de que só você mesmo pra melhorar, entendeu? Depende de cada um. Vamos supor: lutar contra a matança de animais. Tem gente que é contra, outro são a favor. Para fazer roupa, essas coisas.
V&I: Você não usaria uma roupa feita com a pele de um animal?
Suellem: Não. Nem que me pagassem.
V&I: Então você não come carne.
Suellem: Como carne, sim.
V&I: Não é a mesma coisa? [Eu começo a rir, Suellem também.]
Suellem: É que é assim: na hora de comer você esquece, nem lembra que é um animal. Infelizmente eu como. Mas eu sou contra arrancar a pele de animal. Eu nem pensei nisso, mas eu como de tudo.
V&I: Aliás, qual sua altura e seu peso?
Suellem: Um metro e sessenta e oito, uns 48 quilos. Eu bem que queria ser maior, mas eu não engordo.
V&I: É bom ser magra para posar. E o que você espera das fotos de hoje, que você só vai ver daqui a uns quinze dias?
Suellem: Acho que vai ser ótimo para mim, pois eu sempre quis me ver numa foto profissional. Só não quero que fique muito artificial.
V&I: Você nunca tinha posado antes, mas estava muito à vontade.
Suellem: Ah, eu tenho vergonha. Sério.
V&I: Para encerrar, você quer fazer a sua propaganda como modelo?
Suellem: Querer eu quero, mas eu não sei como fazer isso!
Entregarei as fotos impressas para a Suellem ainda nesta semana. Disponibilizei fotos coloridas da moça em meu portfólio. Quem sabe algum visitante não termina por contratá-la?
Qual é o seu nome?
Suellem.
V&I: Quantos anos você tem?
Suellem: Vinte e três.
V&I: Você é daqui de São Paulo?
Suellem: Sim, da Cidade Tiradentes.
V&I: Você trabalha, estuda?
Suellem: Eu já terminei os estudos. Tenho ensino médio completo e trabalho como operadora de telemarketing.
V&I: Trabalhar com telemarketing é difícil?
Suellem: É bom, dependendo do produto.
V&I: E com que produto você trabalha?
Suellem: Eu vendo cartões de crédito.
V&I: É difícil vender cartão de crédito?
Suellem: É difícil porque eu vendo pra quem já tem mais de quatro cartões. Como é esse é o perfil que eles colocaram para mim, isso dificulta as minhas vendas.
V&I: Quantas vendas você consegue num mês?
Suellem: Menos de trinta. Uma por dia, em média.
V&I: Com quantas pessoas você fala num dia?
Suellem: Trabalhando direto, mais de trezentas pessoas. Isso em seis horas.
V&I: As pessoas costumam ser educadas?
Suellem: Algumas pessoas são muito grossas, mas eu levo na esportiva. Não levo pro lado pessoal.
V&I: Mas não é todo mundo que consegue levar na esportiva, não é?
Suellem: Não. Tem gente que chora, fica com depressão... Acontece bastante.
V&I: Você tem uma meta pra atingir?
Suellem: Tenho. Dois cartões por dia.
V&I: Quantas pessoas trabalham com você?
Suellem: O call center é enorme, mais de trezentas pessoas. Na minha equipe são trinta e cinco pessoas. A minha firma presta serviço para várias outras.
V&I: Você já vendeu outros produtos?
Suellem: Cartão de crédito, bloqueador de celular e de linha...
V&I: Tem algum produto que seja melhor pra vender?
Suellem: Nenhum! [Começa a rir com gosto.]
V&I: Por quê?
Suellem: O que desanima nós, operadores, é que eles colocam clientes fora do perfil. Vamos supor, eu ligo pra você, mas você já é cliente de outro banco...
V&I: Nesse caso, vender o cartão é um desafio.
Suellem: Exatamente.
V&I: Já trabalhou com outra coisa que não telemarketing?
Suellem: Já trabalhei na casa de uma artista... Não posso revelar o nome. Eu fui contratada pra olhar o cachorrinho.
V&I: Por que você não pode falar quem era? Pediram pra você não comentar?
Suellem: Na época, sim. Medo de assalto. Conseguiram entrar até no apartamento da Fátima Bernardes, não é?
V&I: Com o que você gosta de trabalhar?
Suellem: O que eu gosto mesmo é de animais. Gostaria de trabalhar numa pet shop.
V&I: Você tem algum animal de estimação em casa?
Suellem: Não, minha mãe não deixa. A única coisa que ela deixa é peixe. Eu moro em apartamento.
V&I: Então você tem peixes de aquário.
Suellem: Tinha um... Ele morreu. Eu acho que ele bateu a cabeça numa pedra. [Começa a rir.] Ele morreu do nada!
V&I: Você tem namorado?
Suellem: Namorei por quase um ano. Terminei faz menos de um mês.
V&I: Pretende casar, ter filhos?
Suellem: Um dia, casar. Eu ainda sou muito nova. Quero ter dois filhos.
V&I: O que você espera do futuro?
Suellem: Eu quero pôr meu sonho em prática.
V&I: Qual é o seu sonho?
Suellem: Ser modelo. Mas não de sucesso.
V&I: Como assim? Quer ser modelo sem sucesso?
Suellem: Muita menina quer fazer muito sucesso, mas isso é uma ilusão. Eu só de desfilar numa passarela fico feliz, porque faço isso com amor.
V&I: Você já desfilou?
Suellem: Não. Eu já participei de um concurso, mas não ganhei.
V&I: Que concurso?
Suellem: "Bonequinha do Café", no meu bairro. É que antigamente umas moças trabalhavam no cafezal e eram muito exploradas. Aí fizeram essa homenagem. Agora vai ter um outro concurso: Miss Tiradentes.
V&I: Você gosta da Cidade Tiradentes?
Suellem: Adoro. Lá é a maior cohab [conjunto habitacional] da América Latina. Melhorou muito: tem banco, comércio, vão construir um shopping.
V&I: Lá tem muitos lugares para sair?
Suellem: Lugar pra sair não tem. Bar, só aqueles barzinhos de forró.
V&I: Você não gosta de forró?
Suellem: Não, odeio. Eu gosto de dançar black, samba e só.
V&I: E que mais você gosta de fazer?
Suellem: Eu gosto bastante de ler. Estou lendo “Pé no chão, cabeça nas estrelas”, não lembro o autor. [Trata-se de Lair Ribeiro, um dos papas da auto-ajuda.]
V&I: Algum livro marcante?
Suellem: “Você é o melhor de Deus”. É um livro que incentiva as pessoas. [O autor é o pregador evangélico norte-americano T.L. Osborn.]
V&I: Gosta de cinema?
Suellem: Gosto. Um filme que me marcou foi “Amor e basquete”. [No original, Love and basketball, direção de Gina Prince-Bythewood, 2000.]
V&I: Mudando de assunto, o que você acha do Brasil?
Suellem: É um país riquíssimo, tem seus defeitos - corrupção, essas coisas - mas é um lugar ótimo pra se viver. É o único lugar que não tem furacão, essas coisas.
V&I: Mas você acha que o Brasil tem jeito?
Suellem: Tem jeito. O maior culpado é o governo: muito imposto. Mas eu tenho um raciocínio meio particular de que só você mesmo pra melhorar, entendeu? Depende de cada um. Vamos supor: lutar contra a matança de animais. Tem gente que é contra, outro são a favor. Para fazer roupa, essas coisas.
V&I: Você não usaria uma roupa feita com a pele de um animal?
Suellem: Não. Nem que me pagassem.
V&I: Então você não come carne.
Suellem: Como carne, sim.
V&I: Não é a mesma coisa? [Eu começo a rir, Suellem também.]
Suellem: É que é assim: na hora de comer você esquece, nem lembra que é um animal. Infelizmente eu como. Mas eu sou contra arrancar a pele de animal. Eu nem pensei nisso, mas eu como de tudo.
V&I: Aliás, qual sua altura e seu peso?
Suellem: Um metro e sessenta e oito, uns 48 quilos. Eu bem que queria ser maior, mas eu não engordo.
V&I: É bom ser magra para posar. E o que você espera das fotos de hoje, que você só vai ver daqui a uns quinze dias?
Suellem: Acho que vai ser ótimo para mim, pois eu sempre quis me ver numa foto profissional. Só não quero que fique muito artificial.
V&I: Você nunca tinha posado antes, mas estava muito à vontade.
Suellem: Ah, eu tenho vergonha. Sério.
V&I: Para encerrar, você quer fazer a sua propaganda como modelo?
Suellem: Querer eu quero, mas eu não sei como fazer isso!
Entregarei as fotos impressas para a Suellem ainda nesta semana. Disponibilizei fotos coloridas da moça em meu portfólio. Quem sabe algum visitante não termina por contratá-la?
12.4.07
CLEUZA
Calçada da prefeitura, na cabeceira do Viaduto do Chá. Foi ela que passou e ficou me olhando. Melhor dizendo, ficou olhando para a minha câmera e logo pediu que eu a fotografasse. Fiz mais que isso: bati um papo com ela sobre vários assuntos, até mesmo sobre a visita do Bush ao Brasil.
Qual é o seu nome?
Cleuza.
V&I: Cleuza, o que você está fazendo aqui no Centro de São Paulo, no fim da tarde de domingo?
Cleuza: Eu estava trabalhando. Eu trabalho lá embaixo, ao lado do mercadão.
V&I: O que você faz?
Cleuza: Eu tenho um ponto de carros. Eu cuido de carros.
V&I: Você trabalha todos os dias?
Cleuza: De segunda a segunda. Dia de semana eu trabalho no Tatuapé. Vendo refrigerantes num farol, em frente ao Cabral [conhecido bar criado por Luciano Huck], do lado da Copel, que caiu.
V&I: Copel?
Cleuza: É uma firma de colchões que desabou. Ficou igual ao buraco do metrô [ri da própria piada.]
V&I: Você é daqui de São Paulo?
Cleuza: Não, sou de Araçatuba. Casei e vim morar aqui.
V&I: Você é casada, tem filhos?
Cleuza: Sou viúva, tenho quatro filhos.
V&I: Quantos anos você tem?
Cleuza: Tenho quarenta e sete. Sou abençoada. Dois setes no mesmo ano. Quarenta e sete, dois mil e sete.
V&I: Você veio para São Paulo com quantos anos?
Cleuza: Deixa eu ver... Pra cá eu vim com trinta. Já vim casada, com filho.
V&I: Seus filhos são grandes?
Cleuza: São. O mais novo está com vinte anos. Todo mundo está casado. Eu tenho oito netos.
V&I: Você mora sozinha?
Cleuza: Não. Moro eu, minha filha, e meus dois netos.
V&I: Você não namora? Não chegou a casar de novo?
Cleuza: Ah… Casar, não. Não quero casar, não. E pra namorar, tem que acontecer, não é? Não apareceu ainda alguém pra ficar junto pelo resto da vida. Tem que ser uma pessoa boa. Não quero uma pessoa que me faça mal.
V&I: Você está voltando para casa?
Cleuza: É. No domingo eu venho pra cá porque eu tenho um ponto em que cuido de carro, entendeu?
V&I: E você está lá no mercadão desde quando?
Cleuza: Desde o dia dos pais do ano passado. Foi um presente de Deus, não é?
V&I: Você falou em Deus. No que você acredita?
Cleuza: Em Deus. Eu sou evangélica. Eu vou na Igreja Pentecostal Estrela da Manhã.
V&I: E você vai sempre a essa igreja?
Cleuza: Vou sempre que dá. Tem semana em que eu vou direto, tem semana que não. Deus é a única pessoa na minha vida. Um Deus poderoso, que pode fazer tudo, que pode me transformar, que pode mudar minha vida.
V&I: A impressão que me dá é que você é muito feliz.
Cleuza: Eu sou feliz, sabe porque? Eu tenho o dia-a-dia, tenho quatro filhos maravilhosos, oito netos. Minha nora agora está grávida de dois meses, fiquei sabendo ontem. Vai vir mais um de meu filho. É tudo benção de Deus. É melhor um bebê que uma doença. Uma doença você só vai gastar, gastar, gastar. Se você não tiver fé, a pessoa acaba morrendo... Com um filho, não. Você vai trabalhar pra cuidar deles.
V&I: Você sempre foi feliz?
Cleuza: Sempre. Com nove anos acho que foi a época em que eu era mais feliz. Eu pescava de peneira. Eu falava que quando me casasse, queria ter quatro filhos, e tive quatro filhos. Tudo filho de um homem só, não queria ter filhos de dois homens. E eu queria sentar na mesa e comer com minha família e jantar com meu marido.
V&I: Seu marido morreu de que?
Cleuza: De cirrose. Ele bebia.
V&I: E daqui pra frente, como você imagina o futuro?
Cleuza: Eu quero ser muito feliz. Eu quero ter um marido bom, um homem que me faça feliz, assim como eu vou fazer ele feliz. Mas que cuide de mim: não quero aquele homem que ganha dez e me diga que ganha cinco porque não vai dar certo, eu vou gastar os cinco e os outros cinco também.
V&I: E o futuro do Brasil?
Cleuza: Vou falar de política. O que esse homem [Bush] veio fazer no Brasil? O Lula lutou tanto pra chegar onde ele chegou, foi guerreiro, apanhou. Agora, ele quer dar o Brasil para esse homem tomar conta. Você acha que vai acontecer o quê? Olha, eu moro na Cidade Tiradentes [bairro a 25 quilômetros em linha reta do centro de São Paulo] . Lá eu me sinto bem. Sabe por quê? Por que lá é tudo povo. E o Lula, o que ele está querendo fazer? Vender uma coisa que nós temos aqui para os Estados Unidos. Você acha que um dia, quando o homem voltar aqui, ele vai comprar mais o quê? Quando for daqui a três anos, o que vai acontecer? Ele [Bush] já tomou conta do Brasil. E aí? Esses milhões de gente que dormem na rua, você acha que vai dormir? Me responde.
V&I: Você está me perguntando? É para responder?
Cleuza: É.
V&I: Esse monte de gente que dorme na rua já é um problema de hoje. Eu venho sempre para o centro e vejo, está cada vez pior.
Cleuza: Então, o que o Lula tem que fazer? Ele lutou tanto, foi um presente de Deus. Isso aí vai sair na internet, ele vai ler. Ele lutou tantos anos, até apanhou pra conseguir o que queria. Agora, ele está jogando fora o nosso país. Ele está dando de mão beijada. Eu acho errado.
V&I: Por que você acha que ele está dando?
Cleuza: Porque ele está vendendo. Ele não está vendendo esse negócio do álcool? Eu não entendo esse negócio aí.Ele vai vender o quê? A fórmula de fazer o álcool? É isso o que eu quero entender.
V&I: A idéia é vender o próprio álcool. Nós fazemos álcool com cana. Eles fazem o álcool com milho, porque eles não tem cana. Só que o álcool feito com milho fica muito caro. Você sabe que a cana vai bem aqui.
Cleuza: É. Muita cana.
V&I: Você acha que o Brasil vai dar certo?
Cleuza: Vai.
V&I: Vai demorar pra dar certo?
Cleuza: Não. Na minha mente, eu acho que algo de bom vai acontecer com esse Brasil. Sabe por quê? Nós temos tudo. Nosso país não é um país miserável. Nós temos tudo. Um dia algo vai ter que mudar.
V&I: Eu também acho.
Cleuza: Então, porque sair daqui pra buscar lá? Nós temos tudo aqui. E o presidente está dando tudo... Depois da cana, sei lá o que ele vai dar pro cara.
V&I: Cleuza, quer dar algum recado pra quem ler essa entrevista na internet?
Cleuza: Vou mandar um abraço pra Amália, eu sei que ela vai me ver. Ela é minha vizinha. Ela é minha amiguinha do coração.
V&I: Quer falar alguma coisa para quem estiver lendo, mesmo sem te conhecer?
Cleuza: Quero que gostem da minha entrevista, e sucesso. Sucesso pra mim e pra quem ler.
Fiz mais algumas cliques de Cleuza e anotei seu endereço, pois fiquei de enviar as fotos pelo correio. Ela saiu contente, não sem antes confessar que sempre que via equipes de televisão na rua, torcia para ser entrevistada pelos repórteres. De todo modo, a Globo não manda fotos dos entrevistados pelo correio, não é mesmo?
Qual é o seu nome?
Cleuza.
V&I: Cleuza, o que você está fazendo aqui no Centro de São Paulo, no fim da tarde de domingo?
Cleuza: Eu estava trabalhando. Eu trabalho lá embaixo, ao lado do mercadão.
V&I: O que você faz?
Cleuza: Eu tenho um ponto de carros. Eu cuido de carros.
V&I: Você trabalha todos os dias?
Cleuza: De segunda a segunda. Dia de semana eu trabalho no Tatuapé. Vendo refrigerantes num farol, em frente ao Cabral [conhecido bar criado por Luciano Huck], do lado da Copel, que caiu.
V&I: Copel?
Cleuza: É uma firma de colchões que desabou. Ficou igual ao buraco do metrô [ri da própria piada.]
V&I: Você é daqui de São Paulo?
Cleuza: Não, sou de Araçatuba. Casei e vim morar aqui.
V&I: Você é casada, tem filhos?
Cleuza: Sou viúva, tenho quatro filhos.
V&I: Quantos anos você tem?
Cleuza: Tenho quarenta e sete. Sou abençoada. Dois setes no mesmo ano. Quarenta e sete, dois mil e sete.
V&I: Você veio para São Paulo com quantos anos?
Cleuza: Deixa eu ver... Pra cá eu vim com trinta. Já vim casada, com filho.
V&I: Seus filhos são grandes?
Cleuza: São. O mais novo está com vinte anos. Todo mundo está casado. Eu tenho oito netos.
V&I: Você mora sozinha?
Cleuza: Não. Moro eu, minha filha, e meus dois netos.
V&I: Você não namora? Não chegou a casar de novo?
Cleuza: Ah… Casar, não. Não quero casar, não. E pra namorar, tem que acontecer, não é? Não apareceu ainda alguém pra ficar junto pelo resto da vida. Tem que ser uma pessoa boa. Não quero uma pessoa que me faça mal.
V&I: Você está voltando para casa?
Cleuza: É. No domingo eu venho pra cá porque eu tenho um ponto em que cuido de carro, entendeu?
V&I: E você está lá no mercadão desde quando?
Cleuza: Desde o dia dos pais do ano passado. Foi um presente de Deus, não é?
V&I: Você falou em Deus. No que você acredita?
Cleuza: Em Deus. Eu sou evangélica. Eu vou na Igreja Pentecostal Estrela da Manhã.
V&I: E você vai sempre a essa igreja?
Cleuza: Vou sempre que dá. Tem semana em que eu vou direto, tem semana que não. Deus é a única pessoa na minha vida. Um Deus poderoso, que pode fazer tudo, que pode me transformar, que pode mudar minha vida.
V&I: A impressão que me dá é que você é muito feliz.
Cleuza: Eu sou feliz, sabe porque? Eu tenho o dia-a-dia, tenho quatro filhos maravilhosos, oito netos. Minha nora agora está grávida de dois meses, fiquei sabendo ontem. Vai vir mais um de meu filho. É tudo benção de Deus. É melhor um bebê que uma doença. Uma doença você só vai gastar, gastar, gastar. Se você não tiver fé, a pessoa acaba morrendo... Com um filho, não. Você vai trabalhar pra cuidar deles.
V&I: Você sempre foi feliz?
Cleuza: Sempre. Com nove anos acho que foi a época em que eu era mais feliz. Eu pescava de peneira. Eu falava que quando me casasse, queria ter quatro filhos, e tive quatro filhos. Tudo filho de um homem só, não queria ter filhos de dois homens. E eu queria sentar na mesa e comer com minha família e jantar com meu marido.
V&I: Seu marido morreu de que?
Cleuza: De cirrose. Ele bebia.
V&I: E daqui pra frente, como você imagina o futuro?
Cleuza: Eu quero ser muito feliz. Eu quero ter um marido bom, um homem que me faça feliz, assim como eu vou fazer ele feliz. Mas que cuide de mim: não quero aquele homem que ganha dez e me diga que ganha cinco porque não vai dar certo, eu vou gastar os cinco e os outros cinco também.
V&I: E o futuro do Brasil?
Cleuza: Vou falar de política. O que esse homem [Bush] veio fazer no Brasil? O Lula lutou tanto pra chegar onde ele chegou, foi guerreiro, apanhou. Agora, ele quer dar o Brasil para esse homem tomar conta. Você acha que vai acontecer o quê? Olha, eu moro na Cidade Tiradentes [bairro a 25 quilômetros em linha reta do centro de São Paulo] . Lá eu me sinto bem. Sabe por quê? Por que lá é tudo povo. E o Lula, o que ele está querendo fazer? Vender uma coisa que nós temos aqui para os Estados Unidos. Você acha que um dia, quando o homem voltar aqui, ele vai comprar mais o quê? Quando for daqui a três anos, o que vai acontecer? Ele [Bush] já tomou conta do Brasil. E aí? Esses milhões de gente que dormem na rua, você acha que vai dormir? Me responde.
V&I: Você está me perguntando? É para responder?
Cleuza: É.
V&I: Esse monte de gente que dorme na rua já é um problema de hoje. Eu venho sempre para o centro e vejo, está cada vez pior.
Cleuza: Então, o que o Lula tem que fazer? Ele lutou tanto, foi um presente de Deus. Isso aí vai sair na internet, ele vai ler. Ele lutou tantos anos, até apanhou pra conseguir o que queria. Agora, ele está jogando fora o nosso país. Ele está dando de mão beijada. Eu acho errado.
V&I: Por que você acha que ele está dando?
Cleuza: Porque ele está vendendo. Ele não está vendendo esse negócio do álcool? Eu não entendo esse negócio aí.Ele vai vender o quê? A fórmula de fazer o álcool? É isso o que eu quero entender.
V&I: A idéia é vender o próprio álcool. Nós fazemos álcool com cana. Eles fazem o álcool com milho, porque eles não tem cana. Só que o álcool feito com milho fica muito caro. Você sabe que a cana vai bem aqui.
Cleuza: É. Muita cana.
V&I: Você acha que o Brasil vai dar certo?
Cleuza: Vai.
V&I: Vai demorar pra dar certo?
Cleuza: Não. Na minha mente, eu acho que algo de bom vai acontecer com esse Brasil. Sabe por quê? Nós temos tudo. Nosso país não é um país miserável. Nós temos tudo. Um dia algo vai ter que mudar.
V&I: Eu também acho.
Cleuza: Então, porque sair daqui pra buscar lá? Nós temos tudo aqui. E o presidente está dando tudo... Depois da cana, sei lá o que ele vai dar pro cara.
V&I: Cleuza, quer dar algum recado pra quem ler essa entrevista na internet?
Cleuza: Vou mandar um abraço pra Amália, eu sei que ela vai me ver. Ela é minha vizinha. Ela é minha amiguinha do coração.
V&I: Quer falar alguma coisa para quem estiver lendo, mesmo sem te conhecer?
Cleuza: Quero que gostem da minha entrevista, e sucesso. Sucesso pra mim e pra quem ler.
Fiz mais algumas cliques de Cleuza e anotei seu endereço, pois fiquei de enviar as fotos pelo correio. Ela saiu contente, não sem antes confessar que sempre que via equipes de televisão na rua, torcia para ser entrevistada pelos repórteres. De todo modo, a Globo não manda fotos dos entrevistados pelo correio, não é mesmo?
31.3.07
CAMILA, VICTOR e ANDRÉ
Eu estava em Penedo, maior cidade do Baixo São Francisco, recostado em um muro que se debruça sobre o Velho Chico, a bonita tonalidade de suas águas realçada pelo sol do fim da tarde e até por isso puxada para um marrom brilhante. Eu olhava para uns postes fincados lá no meio do rio, junto a algo que parecia ser um casebre engolido pela água, e me perguntava que raio poderia ser aquilo, já que o São Francisco aparentemente não estava muito cheio. Então chegaram as crianças - dois meninos e uma menina, varas de pesca nas mãos - e me explicaram que quando o nível da água descia, aparecia uma praia quase no meio do rio, sendo o casebre uma barraca de lanches. E ficamos a prosear, o plácido e manso rio como testemunha.
Quais os seus nomes?
Camila... Victor... André.
V&I: O meu nome é Ricardo. Quantos anos vocês têm?
Camila: Nove anos.
Victor: Onze anos.
André: Onze anos.
V&I: Vocês são amigos, irmãos, primos?
Victor: Eu e ela somos irmãos. Ele é nosso primo.
V&I: Vocês todos são de Penedo?
André: Eu sou do Rio.
Camila: Nós [Camila e Victor] somos. E você, da onde é?
V&I: Eu sou de São Paulo.
Camila: São Paulo é melhor que aqui, não é?
V&I: Em algumas coisas é melhor, em outras é pior.
Camila: Como é São Paulo?
V&I: São Paulo? É muito grande. Mas me digam uma coisa: o que vocês estão fazendo aqui?
André: Estamos pescando. [Mostrou a linha de pesca enrolada na mão.]
V&I: E aqui dá muito peixe?
André: Dá, sim. Dá piaba, quer ver? [Afastou-se e voltou com as iscas: um peixinho de uns quatro ou cinco centímetros, algumas minhocas ainda vivas.]Victor: Você é fotógrafo?
V&I: Sou, sim. E vocês, estudam?
Camila: Estudamos.
V&I: E o que vocês querem ser?
Camila: Quero ser modelo. [E fez uma pose forçada para mim.]
Victor: Eu quero ser jogador de futebol.
André: Eu também quero ser jogador... Ou fotógrafo.
V&I: Vocês não são nada bobos... Modelo e jogadores de futebol...
André: Você vai fotografar o pôr-do-sol?
V&I: Eu quero, sim, mas acho que ainda falta uma hora para o sol baixar. Onde o pôr-do-sol é mais bonito?
André: Aqui mesmo. Daqui é mais bonito.
Camila: O que é isso? [Apontou para o gravador que estava em minha mão.]
V&I: É um gravador. Nunca tinha visto?
Camila: Eu não.
V&I: Vou mostrar. Fale alguma coisa.
Camila: Ricardo, boa sorte!
[Voltei a fita e repeti a voz de Camila: “Ricardo, boa sorte!” A menina pareceu encantada em escutar a própria voz.]
V&I: Posso fotografar vocês?
[Camila foi a primeira a aceitar. Fiz várias fotos deles, e deixei meu cartão com telefone e e-mail. Um primo com acesso à internet me pediria as fotos quando eu já estivesse em São Paulo.]
V&I: Gostaram das fotos?
Camila, Victor e André: Gostamos.
V&I: Eu vou indo. Quero tirar mais fotos da cidade antes de voltar aqui para o pôr-do-sol.
Camila: Você vai de carro para São Paulo?
V&I: Não, vou de carro só até Salvador. Depois eu pego um avião para voltar para casa.
Camila: Sabe que eu só andei de carro uma vez?
V&I: Só uma vez?
Camila: Foi com um tio. É que ele mora em outra cidade.
Percebi que Camila queria, junto com o irmão e o primo, andar de carro comigo pela cidade. Só não os levei para um passeio com medo da pecha de seqüestrador ou pedófilo – tanto mais em uma pequena cidade onde eu não conhecia ninguém, estando minha casa mais de dois mil quilômetros para trás. Infelizmente, o segundo passeio de carro na curta existência de Camila era algo fora do meu alcance. E o tal primo ainda não me procurou em busca das fotos do trio...
Quais os seus nomes?
Camila... Victor... André.
V&I: O meu nome é Ricardo. Quantos anos vocês têm?
Camila: Nove anos.
Victor: Onze anos.
André: Onze anos.
V&I: Vocês são amigos, irmãos, primos?
Victor: Eu e ela somos irmãos. Ele é nosso primo.
V&I: Vocês todos são de Penedo?
André: Eu sou do Rio.
Camila: Nós [Camila e Victor] somos. E você, da onde é?
V&I: Eu sou de São Paulo.
Camila: São Paulo é melhor que aqui, não é?
V&I: Em algumas coisas é melhor, em outras é pior.
Camila: Como é São Paulo?
V&I: São Paulo? É muito grande. Mas me digam uma coisa: o que vocês estão fazendo aqui?
André: Estamos pescando. [Mostrou a linha de pesca enrolada na mão.]
V&I: E aqui dá muito peixe?
André: Dá, sim. Dá piaba, quer ver? [Afastou-se e voltou com as iscas: um peixinho de uns quatro ou cinco centímetros, algumas minhocas ainda vivas.]Victor: Você é fotógrafo?
V&I: Sou, sim. E vocês, estudam?
Camila: Estudamos.
V&I: E o que vocês querem ser?
Camila: Quero ser modelo. [E fez uma pose forçada para mim.]
Victor: Eu quero ser jogador de futebol.
André: Eu também quero ser jogador... Ou fotógrafo.
V&I: Vocês não são nada bobos... Modelo e jogadores de futebol...
André: Você vai fotografar o pôr-do-sol?
V&I: Eu quero, sim, mas acho que ainda falta uma hora para o sol baixar. Onde o pôr-do-sol é mais bonito?
André: Aqui mesmo. Daqui é mais bonito.
Camila: O que é isso? [Apontou para o gravador que estava em minha mão.]
V&I: É um gravador. Nunca tinha visto?
Camila: Eu não.
V&I: Vou mostrar. Fale alguma coisa.
Camila: Ricardo, boa sorte!
[Voltei a fita e repeti a voz de Camila: “Ricardo, boa sorte!” A menina pareceu encantada em escutar a própria voz.]
V&I: Posso fotografar vocês?
[Camila foi a primeira a aceitar. Fiz várias fotos deles, e deixei meu cartão com telefone e e-mail. Um primo com acesso à internet me pediria as fotos quando eu já estivesse em São Paulo.]
V&I: Gostaram das fotos?
Camila, Victor e André: Gostamos.
V&I: Eu vou indo. Quero tirar mais fotos da cidade antes de voltar aqui para o pôr-do-sol.
Camila: Você vai de carro para São Paulo?
V&I: Não, vou de carro só até Salvador. Depois eu pego um avião para voltar para casa.
Camila: Sabe que eu só andei de carro uma vez?
V&I: Só uma vez?
Camila: Foi com um tio. É que ele mora em outra cidade.
Percebi que Camila queria, junto com o irmão e o primo, andar de carro comigo pela cidade. Só não os levei para um passeio com medo da pecha de seqüestrador ou pedófilo – tanto mais em uma pequena cidade onde eu não conhecia ninguém, estando minha casa mais de dois mil quilômetros para trás. Infelizmente, o segundo passeio de carro na curta existência de Camila era algo fora do meu alcance. E o tal primo ainda não me procurou em busca das fotos do trio...
22.3.07
GIL
Eu estava em Aracaju e decidi passar o dia em Penedo, cidade alagoana considerada a capital do baixo São Francisco. Sabia que poderia conseguir belas fotos do casario colonial e do pôr-do-sol sobre as águas do velho Chico. Além das fotos previstas, acabei também clicando a Gil, com quem conversei.
Qual é o seu nome?
Gil.
V&I: Quantos anos você tem, Gil?
Gil: Vinte e seis.
V&I: Casada, filhos?
Gil: Não.
V&I: Você é daqui de Penedo?
Gil: Não, sou de uma outra cidade. Eu estou na casa da minha tia aqui em Penedo.
V&I: Que cidade?
Gil: Ah, você não conhece.
V&I: Mas qual a cidade?
Gil: Igreja Nova. [Igreja Nova, 20 mil almas, 30 quilômetros a frente de Penedo, no caminho para a BR-101.]
V&I: É longe?
Gil: Não. Fica a uma hora daqui. E você, de onde é?
V&I: Eu sou de São Paulo. Dá para notar pelo sotaque, não é?
Gil: É.
V&I: Conhece São Paulo?
Gil: Eu já estive lá por uns tempos.
V&I: Gostou?
Gil: Não...
V&I: E há quanto tempo você está em Penedo?
Gil: Uns três meses.
V&I: O que você faz da vida, Gil?
Gil: Não faço nada.
V&I: Que inveja! Eu faço coisas demais. Quer trocar?
[Gil sorriu, timidamente.]
V&I: Mas por que você não faz nada?
Gil: É que eu tenho pouco estudo. Fica difícil arrumar alguma coisa.
V&I: Fica difícil, sim. E quando vai voltar para casa?
Gil: Não sei, não.
V&I: Posso fotografar você? Se você quiser, depois eu mando a foto.
Gil hesitou um pouco, mas aceitou que eu a clicasse. Largou a bolsa no chão da rua e esperou que eu fizesse as fotos. Pedi que mudasse de posição para que a luz do sol incidisse em um ângulo mais favorável. Fiz assim duas fotos; em ambas, a fisionomia de Gil estava muito sisuda.
V&I: Por que você sai tão séria nas fotos?
Gil: É que eu não gosto de sair rindo.
Convenci Gil a posar sorrindo. Depois mostrei-lhe as fotos; encabulada, concordou comigo e também preferiu a foto em que se mostrava sorrindo. Muito em breve, é essa a foto que Gil receberá pelo correio.
Qual é o seu nome?
Gil.
V&I: Quantos anos você tem, Gil?
Gil: Vinte e seis.
V&I: Casada, filhos?
Gil: Não.
V&I: Você é daqui de Penedo?
Gil: Não, sou de uma outra cidade. Eu estou na casa da minha tia aqui em Penedo.
V&I: Que cidade?
Gil: Ah, você não conhece.
V&I: Mas qual a cidade?
Gil: Igreja Nova. [Igreja Nova, 20 mil almas, 30 quilômetros a frente de Penedo, no caminho para a BR-101.]
V&I: É longe?
Gil: Não. Fica a uma hora daqui. E você, de onde é?
V&I: Eu sou de São Paulo. Dá para notar pelo sotaque, não é?
Gil: É.
V&I: Conhece São Paulo?
Gil: Eu já estive lá por uns tempos.
V&I: Gostou?
Gil: Não...
V&I: E há quanto tempo você está em Penedo?
Gil: Uns três meses.
V&I: O que você faz da vida, Gil?
Gil: Não faço nada.
V&I: Que inveja! Eu faço coisas demais. Quer trocar?
[Gil sorriu, timidamente.]
V&I: Mas por que você não faz nada?
Gil: É que eu tenho pouco estudo. Fica difícil arrumar alguma coisa.
V&I: Fica difícil, sim. E quando vai voltar para casa?
Gil: Não sei, não.
V&I: Posso fotografar você? Se você quiser, depois eu mando a foto.
Gil hesitou um pouco, mas aceitou que eu a clicasse. Largou a bolsa no chão da rua e esperou que eu fizesse as fotos. Pedi que mudasse de posição para que a luz do sol incidisse em um ângulo mais favorável. Fiz assim duas fotos; em ambas, a fisionomia de Gil estava muito sisuda.
V&I: Por que você sai tão séria nas fotos?
Gil: É que eu não gosto de sair rindo.
Convenci Gil a posar sorrindo. Depois mostrei-lhe as fotos; encabulada, concordou comigo e também preferiu a foto em que se mostrava sorrindo. Muito em breve, é essa a foto que Gil receberá pelo correio.
10.2.07
FRANCISCO
Eu o vejo quase todos os finais de semana, esmolando perto do prédio da prefeitura, recostado à grade do Viaduto do Chá. Roupas surradas, chega com o auxílio de muletas e ali fica, a velha bacia branca estendida para os passantes. No mesmo dia em que falei com José Molina e Albino (divulgadores da Cultura Racional, próximos entrevistados a serem publicados) tive minha primeira conversa com Francisco. Aproveitei a ocasião e fotografei-o.Uma semana depois, reencontrei-o no lugar de sempre e entreguei uma cópia em cores de um de seus retratos. Francisco agradeceu e mostrou-se feliz ao ver o próprio rosto transposto em papel.Conversamos bastante, e mais uma vez ele se mostrou mais à vontade no papel de entrevistador do que no de entrevistado.
V&I: Olá, Francisco. Tudo bom?
Francisco: Eu tou de bengala.
V&I: Por que você usa bengala?
Francisco: Eu tou com deficiência. Chama-se... [Afasta-se do gravador e aborda um homem, que o ignora.] Irmão, dá uma entrevista? [Volta ao gravador.] Eu tou com deficiência.
V&I: É artrose o que você tem?
Francisco: Artrose.
V&I: É no joelho?
Francisco: É no joelho.
V&I: É porque você andava muito de bicicleta, não é?
Francisco: De bicicleta.
V&I: E o que você fazia de bicicleta?
Francisco: Eu trabalhei... [esquece o gravador, aborda alguém que passa, volta a falar] ...na Associação Comercial de São Paulo.
V&I: E o que você fazia lá?
[Francisco se desloca na direção de outro homem e pede uma entrevista. Mais uma vez é ignorado.]
Francisco: Ele não quer falar...
V&I: Você quer continuar?
Francisco: Vamos. Eu trabalhei trinta e cinco anos na rua Boavista. [Aborda outros transeuntes, sempre sem sucesso. “Ô, irmão, me dá uma entrevista? Ô, irmã, me dá uma entrevista?”] Eu trabalhei trinta e cinco anos...
V&I: O q você fazia lá? O que você entregava de bicicleta? Jornal?
Francisco: É. O Diário do Comércio. [Uma mulher dá uma moeda.] Olha só. Já ganhei cinqüenta centavos!
V&I: Onde você nasceu, Francisco?
Francisco: Eu sou paulista, rapaz!
V&I: Você tinha dito que é alagoano. Onde você nasceu, Francisco?
[Francisco aborda as pessoas, sempre pedindo uma entrevista. Parou junto a um grupo, apontou para mim e disse que eu era da Globo.]
V&I: Ei, Francisco. Você que é o entrevistado! É você quem tem que dar a entrevista pra mim.
Francisco: É... Eu trabalhei trinta e cinco anos.
V&I: Você é de Alagoas, não é?
Francisco: Alagoano.
V&I: De que lugar?
Francisco: São Miguel dos Campos.
V&I: Quando você veio pra São Paulo?
Francisco: Dois mil e sete.
V&I: Não, não... Em que ano que você veio pra cá? Há quantos anos você está em São Paulo?
Francisco: Trinta e cinco anos. Mas você chegou com minha foto!
V&I: É claro. Eu falei que vinha com sua foto. Você gostou?
Francisco: Menino...
V&I: Você gostou, não é? Ficou bonito.
Francisco: Ave Maria! [Rindo muito. Novamente foi atrás das pessoas que passavam.]
V&I: É você quem tem que dar a entrevista.
Francisco: Eu, não é?
V&I: É. Francisco, você casou?
Francisco: Eu fui casado, sou viúvo.
V&I: Quantos filhos você tem?
Francisco: Isso é um gato? [Aponta para uma moça, que passa com um cachorrinho nos braços.]
V&I: Acho que era um cachorro.
[Francisco ri. Continua a abordar quem passa..]
V&I: Ah! Francisco, você não quer dar entrevista.
Francisco: Eu quero.
V&I: Então, fala! Quantos filhos você tem?
Francisco: O Sérgio, o Luis e a Raquel.
V&I: Estão todos em São Paulo?
Francisco: Todos paulistas.
V&I: Eles casaram? Você tem netos?
Francisco: Casaram... Tenho netos... [Aproxima-se das pessoas e propõe entrevistas. Ninguém se anima com a idéia.] Mas ninguém gosta!
V&I: Ninguém gosta porque você é muito rápido. Tem que chegar devagarzinho, tem que conversar...
Francisco: Ô, Osvaldo...
V&I: Eu não sou Osvaldo, sou Ricardo. Você tem quantos netos?
E mais uma vez Francisco me ignorou. Desisti da entrevista e desliguei o gravador. Voltei a fotografar quem passava, aproveitando a ótima luz daquela tarde. Longe do gravador, acabei ouvindo mais de Francisco: que era viúvo há três anos, que a esposa morreu de diabetes, que recebia uma aposentadoria de trezentos reais. Soube também que todos os dias saía de sua casinha no Jardim Camargo Velho e pegava um ônibus para ir esmolar ali no Centro – vinte e sete quilômetros em linha reta.
Sem que eu perguntasse, sugeriu que eu fizesse um livro de fotos com o nome “Vida Cotidiana”. Foi abordado por dois pregadores, igrejas Pentecostal e Deus é Amor, respectivamente.
Recostado à grade do Viaduto do Chá, Francisco continuou a pedir entrevistas em suas abordagens aos passantes. Depois, com a mesma falta de sucesso, passou a pedir sorrisos – “Ei, me dá um sorriso?” Eu não estava tão longe quando Francisco finalmente arrancou o sorriso de um gari, ao exclamar, alto e bom som: “Eu tou de pinto duro!” O gari: “Êpa!” E Francisco emendou: “É assim que tem que ficar.”
Francisco ainda voltaria a falar sobre sexo. Uma mulher de uns quarenta anos com ele dividiu um milho verde. Francisco agradeceu o milho e logo avisou a ela que nada esperasse dele - “estou há nove anos sem sexo.” Ela reclamou sem convicção de que as pessoas só pensam em sexo, que as pessoas confundem gentileza com sacanagem. Posou para uma foto que tirei, ela ao lado de Francisco. Apenas soube a profissão dela quando ao se despedir recitou o endereço da boate onde trabalhava: "pode aparecer", escutei dela. Não apareci na tal boate. Devo estar perdendo uma ótima entrevista...
V&I: Olá, Francisco. Tudo bom?
Francisco: Eu tou de bengala.
V&I: Por que você usa bengala?
Francisco: Eu tou com deficiência. Chama-se... [Afasta-se do gravador e aborda um homem, que o ignora.] Irmão, dá uma entrevista? [Volta ao gravador.] Eu tou com deficiência.
V&I: É artrose o que você tem?
Francisco: Artrose.
V&I: É no joelho?
Francisco: É no joelho.
V&I: É porque você andava muito de bicicleta, não é?
Francisco: De bicicleta.
V&I: E o que você fazia de bicicleta?
Francisco: Eu trabalhei... [esquece o gravador, aborda alguém que passa, volta a falar] ...na Associação Comercial de São Paulo.
V&I: E o que você fazia lá?
[Francisco se desloca na direção de outro homem e pede uma entrevista. Mais uma vez é ignorado.]
Francisco: Ele não quer falar...
V&I: Você quer continuar?
Francisco: Vamos. Eu trabalhei trinta e cinco anos na rua Boavista. [Aborda outros transeuntes, sempre sem sucesso. “Ô, irmão, me dá uma entrevista? Ô, irmã, me dá uma entrevista?”] Eu trabalhei trinta e cinco anos...
V&I: O q você fazia lá? O que você entregava de bicicleta? Jornal?
Francisco: É. O Diário do Comércio. [Uma mulher dá uma moeda.] Olha só. Já ganhei cinqüenta centavos!
V&I: Onde você nasceu, Francisco?
Francisco: Eu sou paulista, rapaz!
V&I: Você tinha dito que é alagoano. Onde você nasceu, Francisco?
[Francisco aborda as pessoas, sempre pedindo uma entrevista. Parou junto a um grupo, apontou para mim e disse que eu era da Globo.]
V&I: Ei, Francisco. Você que é o entrevistado! É você quem tem que dar a entrevista pra mim.
Francisco: É... Eu trabalhei trinta e cinco anos.
V&I: Você é de Alagoas, não é?
Francisco: Alagoano.
V&I: De que lugar?
Francisco: São Miguel dos Campos.
V&I: Quando você veio pra São Paulo?
Francisco: Dois mil e sete.
V&I: Não, não... Em que ano que você veio pra cá? Há quantos anos você está em São Paulo?
Francisco: Trinta e cinco anos. Mas você chegou com minha foto!
V&I: É claro. Eu falei que vinha com sua foto. Você gostou?
Francisco: Menino...
V&I: Você gostou, não é? Ficou bonito.
Francisco: Ave Maria! [Rindo muito. Novamente foi atrás das pessoas que passavam.]
V&I: É você quem tem que dar a entrevista.
Francisco: Eu, não é?
V&I: É. Francisco, você casou?
Francisco: Eu fui casado, sou viúvo.
V&I: Quantos filhos você tem?
Francisco: Isso é um gato? [Aponta para uma moça, que passa com um cachorrinho nos braços.]
V&I: Acho que era um cachorro.
[Francisco ri. Continua a abordar quem passa..]
V&I: Ah! Francisco, você não quer dar entrevista.
Francisco: Eu quero.
V&I: Então, fala! Quantos filhos você tem?
Francisco: O Sérgio, o Luis e a Raquel.
V&I: Estão todos em São Paulo?
Francisco: Todos paulistas.
V&I: Eles casaram? Você tem netos?
Francisco: Casaram... Tenho netos... [Aproxima-se das pessoas e propõe entrevistas. Ninguém se anima com a idéia.] Mas ninguém gosta!
V&I: Ninguém gosta porque você é muito rápido. Tem que chegar devagarzinho, tem que conversar...
Francisco: Ô, Osvaldo...
V&I: Eu não sou Osvaldo, sou Ricardo. Você tem quantos netos?
E mais uma vez Francisco me ignorou. Desisti da entrevista e desliguei o gravador. Voltei a fotografar quem passava, aproveitando a ótima luz daquela tarde. Longe do gravador, acabei ouvindo mais de Francisco: que era viúvo há três anos, que a esposa morreu de diabetes, que recebia uma aposentadoria de trezentos reais. Soube também que todos os dias saía de sua casinha no Jardim Camargo Velho e pegava um ônibus para ir esmolar ali no Centro – vinte e sete quilômetros em linha reta.
Sem que eu perguntasse, sugeriu que eu fizesse um livro de fotos com o nome “Vida Cotidiana”. Foi abordado por dois pregadores, igrejas Pentecostal e Deus é Amor, respectivamente.
Recostado à grade do Viaduto do Chá, Francisco continuou a pedir entrevistas em suas abordagens aos passantes. Depois, com a mesma falta de sucesso, passou a pedir sorrisos – “Ei, me dá um sorriso?” Eu não estava tão longe quando Francisco finalmente arrancou o sorriso de um gari, ao exclamar, alto e bom som: “Eu tou de pinto duro!” O gari: “Êpa!” E Francisco emendou: “É assim que tem que ficar.”
Francisco ainda voltaria a falar sobre sexo. Uma mulher de uns quarenta anos com ele dividiu um milho verde. Francisco agradeceu o milho e logo avisou a ela que nada esperasse dele - “estou há nove anos sem sexo.” Ela reclamou sem convicção de que as pessoas só pensam em sexo, que as pessoas confundem gentileza com sacanagem. Posou para uma foto que tirei, ela ao lado de Francisco. Apenas soube a profissão dela quando ao se despedir recitou o endereço da boate onde trabalhava: "pode aparecer", escutei dela. Não apareci na tal boate. Devo estar perdendo uma ótima entrevista...
22.12.06
VALQUÍRIA
Depois de um dia estafante de trabalho, saí com a câmera fotográfica rumo ao centro de São Paulo. Estava equipado: lentes, cabo disparador, tripé. Eu fazia algumas fotos no Pátio do Colégio, a objetiva apontando para o prédio do Banespa, quando uma pequena e bonita menina veio olhar o que eu estava fazendo.
Qual é o seu nome?
Valquíria.
V&I: Quantos anos você tem?
Valquíria: Oito anos.
V&I: Oito anos? Mas não parece!
Valquíria: Todo mundo pensa que eu tenho seis. Mas eu já estou até estudando de tarde.
V&I: É que você é pequenininha. Você mora por aqui?
Valquíria: Eu moro na rua... [Ela ia continuar, mas de repente ficou muda.]
V&I: Entendi. Sua mãe falou para você não dizer onde mora para estranhos. Ela está certa. [Valquíria olha para mim e concorda.]
V&I: O que você quer ser quando crescer?
Valquíria: Quero ser que nem você [aponta para minha câmera]. Posso ver as fotos?
[Mostrei então as fotos que fiz do Pátio do Colégio e do prédio do Banespa iluminados com decoração de Natal.]
Valquíria: Tira uma foto minha?
V&I: Tiro, sim. Deixa só eu trocar a lente.
Valquíria: O que é lente?
V&I: É esse vidro aqui. São os olhos da máquina fotográfica.
[Depois de trocar a lente, comecei a fotografar a menina.]
V&I: O que você gosta de fazer?
Valquíria: Gosto de jogar bola. Tira a minha foto jogando bola?
V&I: Eu tiro, sim. Diz uma coisa: só gosta de brincar de jogar bola?
Valquíria: Não. Gosto de Barbie também.
Fiz algumas fotos de Valquíria; logo ela chamou seus amigos para mais fotos. Fiquei cercado por crianças, todas curiosas em ver as próprias imagens no visor da câmera. Muito de repente, foram todas embora com muita pressa. Talvez tenham se dado conta do horário, pois já passava das dez da noite ali no Pátio do Colégio. Hora das crianças estarem em casa... Talvez de olho em alguma novela da Globo!
10.12.06
GERALDA
Voltava sem pressa para São Paulo pela Via Dutra quando avistei a monumental Basílica Nova, na cidade de Aparecida. Resolvi visitá-la e tirar algumas fotos. Fiz alguns cliques da missa que acontecia no interior da gigantesca construção; já estava de saída quando uma senhora idosa, caprichosamente vestida de branco, deixou o culto e perguntou se eu poderia fotografá-la. “É pra já”, disse eu. “A senhora daria uma entrevista para mim?” Ela aceitou no ato. E foi assim que inesperadamente consegui a entrevista que segue.
RM: Qual o nome da senhora?
Geralda.
RM: De onde a senhora é?
Geralda: Eu venho de Maringá.
RM: Quantos quilômetros daqui?
Geralda: Eu não sei, não.
RM: Quando a senhora saiu de casa, e quando a senhora chegou aqui?
Geralda: Saí de lá às seis (da manhã). O ônibus teve um problema, teve que parar... Cheguei aqui há uma hora (ou seja, às seis e meia da tarde).
RM: E quando vocês vão embora?
Geralda: Na volta a gente vai passar por São Paulo, pra ver a missa das cinco do padre Marcelo.
RM: Cinco horas da manhã?
Geralda: Cinco horas da tarde. Depois da missa do padre Marcelo, a gente sai de São Paulo e vai embora pra casa.
RM: Estou vendo a senhora com essa roupa branca, bonita, trabalhada. Está pagando uma promessa?
Geralda: É.
RM: Eu posso saber o motivo dessa promessa?
Geralda: É que eu fiquei quarenta horas desacordada.
RM: Algum acidente?
Geralda: Não, doença.
RM: Quando foi isso?
Geralda: Há mais de cinquenta anos. Os outros prometeram por mim, fizeram a promessa.
RM: Pediram à Nossa Senhora Aparecida.
Geralda: Isso. E hoje eu vim pagar a promessa.
RM: Quantos anos a senhora tem?
Geralda: Eu tenho oitenta anos, mas na certidão eu tenho cinqüenta e três.
RM: Tem marido, filhos?
Geralda: Só tenho duas filhas, duas netas e dois bisnetos.
RM: Vamos tirar as fotos?
Vamos.
Eu sabia que Geralda não queria perder a missa; por isso, fiz as fotos com rapidez, em uma das entradas da Basílica Nova. Depois peguei o endereço dela no Paraná e fiquei de enviar as fotos nesta semana. Insistiu em pagar pelas cópias, mas recusei. Geralda se despediu de mim com um abraço e voltou, feliz que só, para o interior da igreja.
RM: Qual o nome da senhora?
Geralda.
RM: De onde a senhora é?
Geralda: Eu venho de Maringá.
RM: Quantos quilômetros daqui?
Geralda: Eu não sei, não.
RM: Quando a senhora saiu de casa, e quando a senhora chegou aqui?
Geralda: Saí de lá às seis (da manhã). O ônibus teve um problema, teve que parar... Cheguei aqui há uma hora (ou seja, às seis e meia da tarde).
RM: E quando vocês vão embora?
Geralda: Na volta a gente vai passar por São Paulo, pra ver a missa das cinco do padre Marcelo.
RM: Cinco horas da manhã?
Geralda: Cinco horas da tarde. Depois da missa do padre Marcelo, a gente sai de São Paulo e vai embora pra casa.
RM: Estou vendo a senhora com essa roupa branca, bonita, trabalhada. Está pagando uma promessa?
Geralda: É.
RM: Eu posso saber o motivo dessa promessa?
Geralda: É que eu fiquei quarenta horas desacordada.
RM: Algum acidente?
Geralda: Não, doença.
RM: Quando foi isso?
Geralda: Há mais de cinquenta anos. Os outros prometeram por mim, fizeram a promessa.
RM: Pediram à Nossa Senhora Aparecida.
Geralda: Isso. E hoje eu vim pagar a promessa.
RM: Quantos anos a senhora tem?
Geralda: Eu tenho oitenta anos, mas na certidão eu tenho cinqüenta e três.
RM: Tem marido, filhos?
Geralda: Só tenho duas filhas, duas netas e dois bisnetos.
RM: Vamos tirar as fotos?
Vamos.
Eu sabia que Geralda não queria perder a missa; por isso, fiz as fotos com rapidez, em uma das entradas da Basílica Nova. Depois peguei o endereço dela no Paraná e fiquei de enviar as fotos nesta semana. Insistiu em pagar pelas cópias, mas recusei. Geralda se despediu de mim com um abraço e voltou, feliz que só, para o interior da igreja.
6.12.06
DANIEL
Eu estava com minha Canon fotografando transeuntes no Viaduto do Chá quando ele - um homem sério, sisudo, fala mansa, pasta de papéis nas mãos - timidamente se aproximou, dizendo que ia para Campinas atrás de um emprego. Convidei-o para uma entrevista e ele logo topou.
RM: Qual é o seu nome?
Meu nome é Daniel.
RM: Daniel, o que você está fazendo aqui no Viaduto do Chá no domingo de tarde?
Daniel: Eu estou aqui desde ontem atrás das minhas documentações. Documentação necessária para um emprego anunciado. Já providenciei, graças a Deus.
RM: É documentação para trabalhar?
Daniel: Pra trabalho, exatamente.
RM: O que você faz?
Daniel: Eu sou armador de ferragens.
RM: O que faz um armador de ferragens?
Daniel: O armador de ferragens lida com vários tipos de trabalho, de serviço, como pontilhão, ponte...
RM: Isso na construção civil.
Daniel: Construção civil. Prédio, residência, casa, Cohab, essas coisas. Diversos tipos de serviço.
RM: Você mora aqui em São Paulo?
Daniel: Moro. Estou morando agora atualmente aqui na Baixada do Glicério.
RM: Você nasceu aqui?
Daniel: Nasci em Paranavaí, mas criado em São Paulo.
RM: Onde fica Paranavaí?
Paranavaí é no Paraná, depois de Londrina, Maringá. Norte do Paraná.
RM: Você está em São Paulo há quantos anos?
Daniel: Estou em São Paulo há 17 anos.
RM: Você gosta daqui?
Daniel: Olha, gostar, a gente tem que dizer que não. Por causa do transtorno, do dia-a-dia, essa cidade, a correria. Mas em termos de serviço, a coisa aqui em São Paulo é melhor do que em certos lugares aí fora. Tem bastante trabalho. Estou passando necessidade, dificuldade, mas graças a Deus estou tentando normalizar, recolocar as coisas no lugar.
RM: Você é casado?
Daniel: Sou casado.
RM: Tem filhos?
Daniel: Tenho um filho mas não está comigo. Está no Paraná.
RM: Quantos anos de casado?
Daniel: Vai fazer 17 anos.
RM: Você está com quantos anos?
Daniel: Eu estou com 42.
RM: Você aparenta menos.
Daniel: Sim, aparento, muitos falam. Mas creio que é só a fisionomia, mesmo.
RM: O que você espera do futuro, de 2007?
Daniel: Eu pretendo agora trabalhar, recomeçar a vida, recolocar as coisas no lugar. Recomeçar de novo, se tudo correr bem. E serviço, não é? Trabalho.
RM: A sua mulher está aqui ou está no Paraná?
Daniel: Está no Paraná.
RM: Você vai trazê-la?
Daniel: Pretendo, futuramente, mais para frente.
RM: Perfeito, então. Obrigado pela entrevista e tudo de bom.
Daniel: Ok.
Apertei a mão de Daniel e ele se foi, passo miúdo e rápido, carregando sua pastinha de plástico transparente cheia de documentos. Oxalá ele consiga o emprego e traga a mulher que ficou no Paraná.
RM: Qual é o seu nome?
Meu nome é Daniel.
RM: Daniel, o que você está fazendo aqui no Viaduto do Chá no domingo de tarde?
Daniel: Eu estou aqui desde ontem atrás das minhas documentações. Documentação necessária para um emprego anunciado. Já providenciei, graças a Deus.
RM: É documentação para trabalhar?
Daniel: Pra trabalho, exatamente.
RM: O que você faz?
Daniel: Eu sou armador de ferragens.
RM: O que faz um armador de ferragens?
Daniel: O armador de ferragens lida com vários tipos de trabalho, de serviço, como pontilhão, ponte...
RM: Isso na construção civil.
Daniel: Construção civil. Prédio, residência, casa, Cohab, essas coisas. Diversos tipos de serviço.
RM: Você mora aqui em São Paulo?
Daniel: Moro. Estou morando agora atualmente aqui na Baixada do Glicério.
RM: Você nasceu aqui?
Daniel: Nasci em Paranavaí, mas criado em São Paulo.
RM: Onde fica Paranavaí?
Paranavaí é no Paraná, depois de Londrina, Maringá. Norte do Paraná.
RM: Você está em São Paulo há quantos anos?
Daniel: Estou em São Paulo há 17 anos.
RM: Você gosta daqui?
Daniel: Olha, gostar, a gente tem que dizer que não. Por causa do transtorno, do dia-a-dia, essa cidade, a correria. Mas em termos de serviço, a coisa aqui em São Paulo é melhor do que em certos lugares aí fora. Tem bastante trabalho. Estou passando necessidade, dificuldade, mas graças a Deus estou tentando normalizar, recolocar as coisas no lugar.
RM: Você é casado?
Daniel: Sou casado.
RM: Tem filhos?
Daniel: Tenho um filho mas não está comigo. Está no Paraná.
RM: Quantos anos de casado?
Daniel: Vai fazer 17 anos.
RM: Você está com quantos anos?
Daniel: Eu estou com 42.
RM: Você aparenta menos.
Daniel: Sim, aparento, muitos falam. Mas creio que é só a fisionomia, mesmo.
RM: O que você espera do futuro, de 2007?
Daniel: Eu pretendo agora trabalhar, recomeçar a vida, recolocar as coisas no lugar. Recomeçar de novo, se tudo correr bem. E serviço, não é? Trabalho.
RM: A sua mulher está aqui ou está no Paraná?
Daniel: Está no Paraná.
RM: Você vai trazê-la?
Daniel: Pretendo, futuramente, mais para frente.
RM: Perfeito, então. Obrigado pela entrevista e tudo de bom.
Daniel: Ok.
Apertei a mão de Daniel e ele se foi, passo miúdo e rápido, carregando sua pastinha de plástico transparente cheia de documentos. Oxalá ele consiga o emprego e traga a mulher que ficou no Paraná.
23.11.06
"ZÉ"
Dez e meia da noite de quarta. Eu mal parei o carro no Pátio do Colégio e já fui recebido pelo cara. Com forte hálito de álcool, foi lme estendendo a mão (suja e grudenta) e começou a puxar conversa: “Chico Buarque vai morrer.” Como eu estava sem o gravador, puxei de memória a maior parte da prosa.
RM: Por que o Chico Buarque vai morrer?
Zé: O Chico Buarque fuma e bebe, vai morrer.
RM: Mas só porque fuma e bebe vai morrer?
Zé: Ele tem aquela mulher gostosa, a Marieta Severo.
RM: A mulherada toda dá em cima do Chico Buarque.
Zé: Você é amigo do Chico Buarque?
RM: Não, mas eu gosto dele.
Zé: Chico Buarque vai morrer. Ele fuma e bebe.
(...)
RM: Qual é o seu nome?
Zé: Por que você quer saber meu nome?
RM: Porque eu gosto de saber o nome das pessoas com quem eu estou falando. Meu nome é Ricardo, e o seu?
Zé: Por que você quer saber meu nome?
RM: Se você não quer falar seu nome, minta. Inventa um nome.
Zé: Eu nunca minto.
RM: Então, vou fingir que você é o Zé.
Zé: Pra que você quer saber meu nome?
(...)
RM: De onde você é?
Zé: Você tem que adivinhar de onde eu sou.
RM: Você tem sotaque meio de carioca.
Zé: Não sou do Rio. Você é brasileiro?
RM: Sou.
Zé: Então, adivinha de que estado eu sou.
RM: Sou bom de geografia. Vou começar do sul: Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Minhas Gerais, Espírito Santo, Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará...
Zé: Nenhum deles. Você não sabe de onde eu sou.
RM: Mas eu não falei todos os estados...
Zé: Você não sabe todos os estados. São 27 estados.
RM: Então faz assim: se eu falar todos os 27 estados, você deixa eu tirar uma foto sua?
Zé: Se fosse falar eu deixo.
(E comecei a falar todos, contando nos dedos, de 1 a 27. 26 estados mais o Distrito Federal.)
RM: Pronto. De onde você é?
Zé: De Tocantins.
RM: Mas quando você nasceu, ainda não existia Tocantins. Era Goiás.
Zé: É.
RM: Palmas nem existia. De onde você é? De perto do rio Araguaia?
Zé: Rapaz, eu quase me afoguei no Araguaia.
RM: Você está há quanto tempo em São Paulo?
Zé: Há dez anos.
RM: O que você faz?
Zé: Eu não faço nada. Eu moro na rua.
(...)
RM: Agora posso tirar a foto?
Zé: Você me dá cinqüenta centavos pra completar meu almoço?
RM: Olha. Dois reais.
Zé: É pro almoço, não é pra janta, não. Eu não almocei hoje ainda.
RM: Posso agora tirar a foto?
Zé: Pode ser junto do sino?
(...)
Zé: Qual a capital de Roma?
RM: Roma não tem capital. Roma que é capital da Itália.
Zé: Não... Você não sabe a capital de Roma.
(...)
RM: Qual a sua religião?
Zé: Eu sou católico apostólico romano.
(...)
Zé: O Papa não mente. O Papa é santo. Você é contra o Papa?
RM: O Papa não é santo.
Zé: Como que o Papa não é santo? O Papa não mente!
(...)
Zé: O que você vai fazer com minha foto? Vai pôr no jornal?
RM: Claro que não. Eu nem sei seu nome.
Zé: Eu te mato, hein?
(...)
Zé: E se você estivesse na Faixa de Gaza?
RM: Eu não vou para a Faixa de Gaza.
Zé: Levar um tiro na Faixa de Gaza. Tum!...
O homem vez por outra puxava a minha mão para um aperto. De modo algum deu o nome, e por isso batizei esse John Doe tupiniquim como “Zé”, “Zé Ninguém”. E Zé começava a repetir seus assuntos, quase fetiches: Chico Buarque, o Papa, a faixa de Gaza, religião. Quando foi embora, Zé falava novamente sobre o Chico. Um policial, que acompanhava a conversa a alguns metros de distância, me indagou quando eu saía do Pátio: “Ele é seu amigo?”
RM: Por que o Chico Buarque vai morrer?
Zé: O Chico Buarque fuma e bebe, vai morrer.
RM: Mas só porque fuma e bebe vai morrer?
Zé: Ele tem aquela mulher gostosa, a Marieta Severo.
RM: A mulherada toda dá em cima do Chico Buarque.
Zé: Você é amigo do Chico Buarque?
RM: Não, mas eu gosto dele.
Zé: Chico Buarque vai morrer. Ele fuma e bebe.
(...)
RM: Qual é o seu nome?
Zé: Por que você quer saber meu nome?
RM: Porque eu gosto de saber o nome das pessoas com quem eu estou falando. Meu nome é Ricardo, e o seu?
Zé: Por que você quer saber meu nome?
RM: Se você não quer falar seu nome, minta. Inventa um nome.
Zé: Eu nunca minto.
RM: Então, vou fingir que você é o Zé.
Zé: Pra que você quer saber meu nome?
(...)
RM: De onde você é?
Zé: Você tem que adivinhar de onde eu sou.
RM: Você tem sotaque meio de carioca.
Zé: Não sou do Rio. Você é brasileiro?
RM: Sou.
Zé: Então, adivinha de que estado eu sou.
RM: Sou bom de geografia. Vou começar do sul: Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Minhas Gerais, Espírito Santo, Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará...
Zé: Nenhum deles. Você não sabe de onde eu sou.
RM: Mas eu não falei todos os estados...
Zé: Você não sabe todos os estados. São 27 estados.
RM: Então faz assim: se eu falar todos os 27 estados, você deixa eu tirar uma foto sua?
Zé: Se fosse falar eu deixo.
(E comecei a falar todos, contando nos dedos, de 1 a 27. 26 estados mais o Distrito Federal.)
RM: Pronto. De onde você é?
Zé: De Tocantins.
RM: Mas quando você nasceu, ainda não existia Tocantins. Era Goiás.
Zé: É.
RM: Palmas nem existia. De onde você é? De perto do rio Araguaia?
Zé: Rapaz, eu quase me afoguei no Araguaia.
RM: Você está há quanto tempo em São Paulo?
Zé: Há dez anos.
RM: O que você faz?
Zé: Eu não faço nada. Eu moro na rua.
(...)
RM: Agora posso tirar a foto?
Zé: Você me dá cinqüenta centavos pra completar meu almoço?
RM: Olha. Dois reais.
Zé: É pro almoço, não é pra janta, não. Eu não almocei hoje ainda.
RM: Posso agora tirar a foto?
Zé: Pode ser junto do sino?
(...)
Zé: Qual a capital de Roma?
RM: Roma não tem capital. Roma que é capital da Itália.
Zé: Não... Você não sabe a capital de Roma.
(...)
RM: Qual a sua religião?
Zé: Eu sou católico apostólico romano.
(...)
Zé: O Papa não mente. O Papa é santo. Você é contra o Papa?
RM: O Papa não é santo.
Zé: Como que o Papa não é santo? O Papa não mente!
(...)
Zé: O que você vai fazer com minha foto? Vai pôr no jornal?
RM: Claro que não. Eu nem sei seu nome.
Zé: Eu te mato, hein?
(...)
Zé: E se você estivesse na Faixa de Gaza?
RM: Eu não vou para a Faixa de Gaza.
Zé: Levar um tiro na Faixa de Gaza. Tum!...
O homem vez por outra puxava a minha mão para um aperto. De modo algum deu o nome, e por isso batizei esse John Doe tupiniquim como “Zé”, “Zé Ninguém”. E Zé começava a repetir seus assuntos, quase fetiches: Chico Buarque, o Papa, a faixa de Gaza, religião. Quando foi embora, Zé falava novamente sobre o Chico. Um policial, que acompanhava a conversa a alguns metros de distância, me indagou quando eu saía do Pátio: “Ele é seu amigo?”
15.11.06
JOSÉ
Tarde de domingo. Parei em frente ao Parque da Luz para fotografar a torre da estação ferroviária, belíssimo prédio que por obra de cuidadosa restauração mostra-se novo em folha. Um senhor que vendia sorvetes em um carrinho da Kibon aproximou-se e mostrou-se interessado em meus cliques. Conversamos um pouco, saboreei um Cornetto de doce-de-leite e convidei-o para entrevista e fotos.
Qual é o seu nome?
José.
O senhor é daqui de São Paulo?
J: Sou daqui de São Paulo.
O senhor estava me falando que morou em São Vicente.
J: Morei em São Vicente.
Fora São Paulo e São Vicente, morou em algum outro lugar?
J: Não, aí é só aqui mesmo.
Por quanto tempo o senhor morou lá?
J: Cinco anos.
O senhor gosta mais de lá ou daqui?
J: Olha, lá é muito legal, mas o meu lugar mesmo é aqui.
Em que bairro o senhor mora?
J: Penha.
O senhor vem da Penha até aqui com o carrinho?
J: Não, o carrinho vem do Brás.
Então o senhor nasceu na Penha e mora na Penha até hoje.
J: Não, eu nasci em Cafelândia. Eu sou cafelandense.
O senhor veio para São Paulo com quantos anos?
J: Vim pra São Paulo já velho, eu morava no Paraná.
Cafelândia é no Paraná?
J: Não, Cafelândia é no estado de São Paulo.
O que o senhor fazia em Cafelândia?
J: Nem conheço Cafelândia. Eu fui criado lá pro Mato Grosso, lá pra Dourados.
O senhor conhece o Brasil todo, então!
J: É. Mato Grosso eu conheço. Eu conheço o Paraná. Eu estive em Maringá, trabalhei em Maringá, me casei em Maringá.
Ma o senhor gosta mesmo é de São Paulo.
J: É.
O senhor tem filhos?
J: Tenho.
Quantos filhos?
J: Sou pai de cinco filhos. Tem três vivos, todos criados.
Qual a idade deles? Todos grandes?
J: Ah... Tem um de 38 anos, uma menina tem 30 e a outra tem 25. Tenho dois, não... Três netos. Um neto com 17 anos, uma neta com 12 e a outra vai fazer 9.
Quantos anos o senhor tem?
J: Eu? 75.
Não parece. O senhor está bem.
J: Não parece, não é? Muita gente fala isso.
Pela sua experiência, me diga: qual a melhor coisa da vida?
J: Olha... Que a gente tenha saúde em primeiro lugar. Pra isso, tem que gostar de comer, na hora certa a gente dormir, e também levantar cedo pra trabalhar.
Por sinal, a tarde estava no fim. O senhor José fechou o guarda-sol colorido, despediu-se e saiu empurrando o carrinho de sorvetes. Três quartos de século de existência, mas que pique! Voltarei lá em outro domingo, para mostrar as fotos que fiz e também para tomar mais sorvete, sempre acompanhado de saborosa prosa.
Qual é o seu nome?
José.
O senhor é daqui de São Paulo?
J: Sou daqui de São Paulo.
O senhor estava me falando que morou em São Vicente.
J: Morei em São Vicente.
Fora São Paulo e São Vicente, morou em algum outro lugar?
J: Não, aí é só aqui mesmo.
Por quanto tempo o senhor morou lá?
J: Cinco anos.
O senhor gosta mais de lá ou daqui?
J: Olha, lá é muito legal, mas o meu lugar mesmo é aqui.
Em que bairro o senhor mora?
J: Penha.
O senhor vem da Penha até aqui com o carrinho?
J: Não, o carrinho vem do Brás.
Então o senhor nasceu na Penha e mora na Penha até hoje.
J: Não, eu nasci em Cafelândia. Eu sou cafelandense.
O senhor veio para São Paulo com quantos anos?
J: Vim pra São Paulo já velho, eu morava no Paraná.
Cafelândia é no Paraná?
J: Não, Cafelândia é no estado de São Paulo.
O que o senhor fazia em Cafelândia?
J: Nem conheço Cafelândia. Eu fui criado lá pro Mato Grosso, lá pra Dourados.
O senhor conhece o Brasil todo, então!
J: É. Mato Grosso eu conheço. Eu conheço o Paraná. Eu estive em Maringá, trabalhei em Maringá, me casei em Maringá.
Ma o senhor gosta mesmo é de São Paulo.
J: É.
O senhor tem filhos?
J: Tenho.
Quantos filhos?
J: Sou pai de cinco filhos. Tem três vivos, todos criados.
Qual a idade deles? Todos grandes?
J: Ah... Tem um de 38 anos, uma menina tem 30 e a outra tem 25. Tenho dois, não... Três netos. Um neto com 17 anos, uma neta com 12 e a outra vai fazer 9.
Quantos anos o senhor tem?
J: Eu? 75.
Não parece. O senhor está bem.
J: Não parece, não é? Muita gente fala isso.
Pela sua experiência, me diga: qual a melhor coisa da vida?
J: Olha... Que a gente tenha saúde em primeiro lugar. Pra isso, tem que gostar de comer, na hora certa a gente dormir, e também levantar cedo pra trabalhar.
Por sinal, a tarde estava no fim. O senhor José fechou o guarda-sol colorido, despediu-se e saiu empurrando o carrinho de sorvetes. Três quartos de século de existência, mas que pique! Voltarei lá em outro domingo, para mostrar as fotos que fiz e também para tomar mais sorvete, sempre acompanhado de saborosa prosa.
6.11.06
TATIANA, PALOMA, JULIANA e ANA CARLA
O sinal vermelho, eu parei. Vidro aberto, logo me ofereceram o folheto para um lançamento imobiliário no Bom Retiro. “Posso tirar uma foto sua?” A menina disse que sim, e logo chamou a colega de trabalho para que posassem juntas. Luz verde, eu agradeci e saí. Acabei dando a volta no quarteirão e parando no semáforo novamente. “Você me dá uma entrevista?” Ela explicou que o supervisor estava por perto, mas que o expediente acabaria em dez minutos. Resolvi estacionar o carro e esperar. Acabei falando não apenas com essa garota, mas também com outras três que cobriam o cruzamento, alinhadas aos pontos cardeais.
Quais os seus nomes?
Tatiana... Paloma... Juliana... Ana Carla.
Quantos anos vocês tem?
Tatiana: Vinte e um.
Paloma: Dezoito.
Juliana: Dezoito.
Ana Carla: Dezoito.
Vocês moram por aqui ou moram longe?
T: Longe, Itaim Paulista.
Todas no Itaim Paulista?
T, P, J e AC: É.
A cada fim de semana vocês trabalham em um lugar diferente?
AC: Sempre por aqui. Sempre no Bom Retiro.
Há quanto tempo vocês entregam panfletos?
AC: Eu, há dois anos e meio.
J, P e T: Há três meses.
Só lançamentos imobiliários?
J: Só.
Vocês estudam?
T: Não.
P: Tou terminando o segundo este ano.
J: Também terminando o segundo.
AC: Tou terminando o terceiro.
Esse trabalho é divertido ou é chato?
J: É cansativo, mas é divertido.
T, P, J e AC: É.
Eu reparei que enquanto vocês trabalham, fazem a maior festa, mostram a maior alegria.
AC: O jeito é trabalhar alegre.
Muita gente não pega o panfleto, não é?
P: Tem muita gente que não pega, mas tem muita gente que é simpática.
Qual o horário de trabalho?
AC: Das dez às seis, agora, que é horário de verão.
Trabalham só fim de semana?
AC: É, só no sábado e no domingo.
Carteira assinada?
J: Ah! Jamais.
E quanto vocês ganham?
AC: Vinte reais no fim de semana, doze reais no meio da semana.
Dão ajuda para o almoço?
T, P, J e AC: Não!
T: Vinte reais livres. Eles te trazem, te levam, e só.
Se querem ir no banheiro, como vocês fazem?
P: A gente vai. Quando tem próximo, a gente vai.
Próximo daqui, onde tem?
T: Tem no estacionamento, no bar, tem no restaurante.
Então tem lugar em que não há um banheiro próximo?
T: Tem lugar que é longe.
E aí? Segura a vontade o dia inteiro?
P: Não vai, só que é que é longe.
E água? Dão água para vocês?
P: Eles não dão água.
P: A água que a gente tem, a gente traz de casa.
Se vocês não trouxerem água de casa, ficam sem água?
AC: Pode ser que alguém dê em um bar. Às vezes os marreteiros...
J: Tem muito lugar que o pessoal não dá.
P: Aqui mesmo. Tem um bar que para gente poder usar o banheiro, a mulher cobra um real.
Vocês ficam trabalhando no meio dos carros. Já tomaram algum susto?
AC: Já. Eu fui atropelada. Moto. Machuquei o pé, engessei.
O que vocês esperam do futuro?
T: Trabalhar e ganhar bem.
AC: Estudar.
J: Eu quero ser gerente.
P: Eu não quero ser gerente. Eu quero ser dona. Eu quero que trabalhem pra mim, não eu trabalhar pra ninguém.
Fiz algumas fotos das moças, que até coreografia fizeram. O ensaio fotográfico acabou de repente: o supervisor chegou com a condução, uma velha Kombi que as deixaria no Itaim Paulista, bairro a vinte e cinco quilômetros dali. Eu me despedi das simpáticas garotas com a certeza de que não mais deixarei de abrir o vidro do carro nos semáforos para pegar os tais folhetos das imobiliárias.
Quais os seus nomes?
Tatiana... Paloma... Juliana... Ana Carla.
Quantos anos vocês tem?
Tatiana: Vinte e um.
Paloma: Dezoito.
Juliana: Dezoito.
Ana Carla: Dezoito.
Vocês moram por aqui ou moram longe?
T: Longe, Itaim Paulista.
Todas no Itaim Paulista?
T, P, J e AC: É.
A cada fim de semana vocês trabalham em um lugar diferente?
AC: Sempre por aqui. Sempre no Bom Retiro.
Há quanto tempo vocês entregam panfletos?
AC: Eu, há dois anos e meio.
J, P e T: Há três meses.
Só lançamentos imobiliários?
J: Só.
Vocês estudam?
T: Não.
P: Tou terminando o segundo este ano.
J: Também terminando o segundo.
AC: Tou terminando o terceiro.
Esse trabalho é divertido ou é chato?
J: É cansativo, mas é divertido.
T, P, J e AC: É.
Eu reparei que enquanto vocês trabalham, fazem a maior festa, mostram a maior alegria.
AC: O jeito é trabalhar alegre.
Muita gente não pega o panfleto, não é?
P: Tem muita gente que não pega, mas tem muita gente que é simpática.
Qual o horário de trabalho?
AC: Das dez às seis, agora, que é horário de verão.
Trabalham só fim de semana?
AC: É, só no sábado e no domingo.
Carteira assinada?
J: Ah! Jamais.
E quanto vocês ganham?
AC: Vinte reais no fim de semana, doze reais no meio da semana.
Dão ajuda para o almoço?
T, P, J e AC: Não!
T: Vinte reais livres. Eles te trazem, te levam, e só.
Se querem ir no banheiro, como vocês fazem?
P: A gente vai. Quando tem próximo, a gente vai.
Próximo daqui, onde tem?
T: Tem no estacionamento, no bar, tem no restaurante.
Então tem lugar em que não há um banheiro próximo?
T: Tem lugar que é longe.
E aí? Segura a vontade o dia inteiro?
P: Não vai, só que é que é longe.
E água? Dão água para vocês?
P: Eles não dão água.
P: A água que a gente tem, a gente traz de casa.
Se vocês não trouxerem água de casa, ficam sem água?
AC: Pode ser que alguém dê em um bar. Às vezes os marreteiros...
J: Tem muito lugar que o pessoal não dá.
P: Aqui mesmo. Tem um bar que para gente poder usar o banheiro, a mulher cobra um real.
Vocês ficam trabalhando no meio dos carros. Já tomaram algum susto?
AC: Já. Eu fui atropelada. Moto. Machuquei o pé, engessei.
O que vocês esperam do futuro?
T: Trabalhar e ganhar bem.
AC: Estudar.
J: Eu quero ser gerente.
P: Eu não quero ser gerente. Eu quero ser dona. Eu quero que trabalhem pra mim, não eu trabalhar pra ninguém.
Fiz algumas fotos das moças, que até coreografia fizeram. O ensaio fotográfico acabou de repente: o supervisor chegou com a condução, uma velha Kombi que as deixaria no Itaim Paulista, bairro a vinte e cinco quilômetros dali. Eu me despedi das simpáticas garotas com a certeza de que não mais deixarei de abrir o vidro do carro nos semáforos para pegar os tais folhetos das imobiliárias.
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