23.11.06

"ZÉ"

Dez e meia da noite de quarta. Eu mal parei o carro no Pátio do Colégio e já fui recebido pelo cara. Com forte hálito de álcool, foi lme estendendo a mão (suja e grudenta) e começou a puxar conversa: “Chico Buarque vai morrer.” Como eu estava sem o gravador, puxei de memória a maior parte da prosa.

RM: Por que o Chico Buarque vai morrer?
Zé: O Chico Buarque fuma e bebe, vai morrer.
RM: Mas só porque fuma e bebe vai morrer?
Zé: Ele tem aquela mulher gostosa, a Marieta Severo.
RM: A mulherada toda dá em cima do Chico Buarque.
Zé: Você é amigo do Chico Buarque?
RM: Não, mas eu gosto dele.
Zé: Chico Buarque vai morrer. Ele fuma e bebe.
(...)
RM: Qual é o seu nome?
Zé: Por que você quer saber meu nome?
RM: Porque eu gosto de saber o nome das pessoas com quem eu estou falando. Meu nome é Ricardo, e o seu?
Zé: Por que você quer saber meu nome?
RM: Se você não quer falar seu nome, minta. Inventa um nome.
Zé: Eu nunca minto.
RM: Então, vou fingir que você é o Zé.
Zé: Pra que você quer saber meu nome?
(...)
RM: De onde você é?
Zé: Você tem que adivinhar de onde eu sou.
RM: Você tem sotaque meio de carioca.
Zé: Não sou do Rio. Você é brasileiro?
RM: Sou.
Zé: Então, adivinha de que estado eu sou.
RM: Sou bom de geografia. Vou começar do sul: Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Minhas Gerais, Espírito Santo, Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará...
Zé: Nenhum deles. Você não sabe de onde eu sou.
RM: Mas eu não falei todos os estados...
Zé: Você não sabe todos os estados. São 27 estados.
RM: Então faz assim: se eu falar todos os 27 estados, você deixa eu tirar uma foto sua?
Zé: Se fosse falar eu deixo.
(E comecei a falar todos, contando nos dedos, de 1 a 27. 26 estados mais o Distrito Federal.)
RM: Pronto. De onde você é?
Zé: De Tocantins.
RM: Mas quando você nasceu, ainda não existia Tocantins. Era Goiás.
Zé: É.
RM: Palmas nem existia. De onde você é? De perto do rio Araguaia?
Zé: Rapaz, eu quase me afoguei no Araguaia.
RM: Você está há quanto tempo em São Paulo?
Zé: Há dez anos.
RM: O que você faz?
Zé: Eu não faço nada. Eu moro na rua.
(...)
RM: Agora posso tirar a foto?
Zé: Você me dá cinqüenta centavos pra completar meu almoço?
RM: Olha. Dois reais.
Zé: É pro almoço, não é pra janta, não. Eu não almocei hoje ainda.
RM: Posso agora tirar a foto?
Zé: Pode ser junto do sino?
(...)
Zé: Qual a capital de Roma?
RM: Roma não tem capital. Roma que é capital da Itália.
Zé: Não... Você não sabe a capital de Roma.
(...)
RM: Qual a sua religião?
Zé: Eu sou católico apostólico romano.
(...)
Zé: O Papa não mente. O Papa é santo. Você é contra o Papa?
RM: O Papa não é santo.
Zé: Como que o Papa não é santo? O Papa não mente!
(...)
Zé: O que você vai fazer com minha foto? Vai pôr no jornal?
RM: Claro que não. Eu nem sei seu nome.
Zé: Eu te mato, hein?
(...)
Zé: E se você estivesse na Faixa de Gaza?
RM: Eu não vou para a Faixa de Gaza.
Zé: Levar um tiro na Faixa de Gaza. Tum!...

O homem vez por outra puxava a minha mão para um aperto. De modo algum deu o nome, e por isso batizei esse John Doe tupiniquim como “Zé”, “Zé Ninguém”. E Zé começava a repetir seus assuntos, quase fetiches: Chico Buarque, o Papa, a faixa de Gaza, religião. Quando foi embora, Zé falava novamente sobre o Chico. Um policial, que acompanhava a conversa a alguns metros de distância, me indagou quando eu saía do Pátio: “Ele é seu amigo?”

15.11.06

JOSÉ

Tarde de domingo. Parei em frente ao Parque da Luz para fotografar a torre da estação ferroviária, belíssimo prédio que por obra de cuidadosa restauração mostra-se novo em folha. Um senhor que vendia sorvetes em um carrinho da Kibon aproximou-se e mostrou-se interessado em meus cliques. Conversamos um pouco, saboreei um Cornetto de doce-de-leite e convidei-o para entrevista e fotos.

Qual é o seu nome?
José.

O senhor é daqui de São Paulo?
J: Sou daqui de São Paulo.

O senhor estava me falando que morou em São Vicente.
J: Morei em São Vicente.

Fora São Paulo e São Vicente, morou em algum outro lugar?
J: Não, aí é só aqui mesmo.

Por quanto tempo o senhor morou lá?
J: Cinco anos.

O senhor gosta mais de lá ou daqui?
J: Olha, lá é muito legal, mas o meu lugar mesmo é aqui.

Em que bairro o senhor mora?
J: Penha.

O senhor vem da Penha até aqui com o carrinho?
J: Não, o carrinho vem do Brás.

Então o senhor nasceu na Penha e mora na Penha até hoje.
J: Não, eu nasci em Cafelândia. Eu sou cafelandense.

O senhor veio para São Paulo com quantos anos?
J: Vim pra São Paulo já velho, eu morava no Paraná.

Cafelândia é no Paraná?
J: Não, Cafelândia é no estado de São Paulo.

O que o senhor fazia em Cafelândia?
J: Nem conheço Cafelândia. Eu fui criado lá pro Mato Grosso, lá pra Dourados.

O senhor conhece o Brasil todo, então!
J: É. Mato Grosso eu conheço. Eu conheço o Paraná. Eu estive em Maringá, trabalhei em Maringá, me casei em Maringá.

Ma o senhor gosta mesmo é de São Paulo.
J: É.

O senhor tem filhos?
J: Tenho.

Quantos filhos?
J: Sou pai de cinco filhos. Tem três vivos, todos criados.

Qual a idade deles? Todos grandes?
J: Ah... Tem um de 38 anos, uma menina tem 30 e a outra tem 25. Tenho dois, não... Três netos. Um neto com 17 anos, uma neta com 12 e a outra vai fazer 9.

Quantos anos o senhor tem?
J: Eu? 75.

Não parece. O senhor está bem.
J: Não parece, não é? Muita gente fala isso.

Pela sua experiência, me diga: qual a melhor coisa da vida?
J: Olha... Que a gente tenha saúde em primeiro lugar. Pra isso, tem que gostar de comer, na hora certa a gente dormir, e também levantar cedo pra trabalhar.

Por sinal, a tarde estava no fim. O senhor José fechou o guarda-sol colorido, despediu-se e saiu empurrando o carrinho de sorvetes. Três quartos de século de existência, mas que pique! Voltarei lá em outro domingo, para mostrar as fotos que fiz e também para tomar mais sorvete, sempre acompanhado de saborosa prosa.

6.11.06

TATIANA, PALOMA, JULIANA e ANA CARLA

O sinal vermelho, eu parei. Vidro aberto, logo me ofereceram o folheto para um lançamento imobiliário no Bom Retiro. “Posso tirar uma foto sua?” A menina disse que sim, e logo chamou a colega de trabalho para que posassem juntas. Luz verde, eu agradeci e saí. Acabei dando a volta no quarteirão e parando no semáforo novamente. “Você me dá uma entrevista?” Ela explicou que o supervisor estava por perto, mas que o expediente acabaria em dez minutos. Resolvi estacionar o carro e esperar. Acabei falando não apenas com essa garota, mas também com outras três que cobriam o cruzamento, alinhadas aos pontos cardeais.

Quais os seus nomes?
Tatiana... Paloma... Juliana... Ana Carla.

Quantos anos vocês tem?
Tatiana: Vinte e um.
Paloma: Dezoito.
Juliana: Dezoito.
Ana Carla: Dezoito.


Vocês moram por aqui ou moram longe?
T: Longe, Itaim Paulista.

Todas no Itaim Paulista?
T, P, J e AC: É.

A cada fim de semana vocês trabalham em um lugar diferente?
AC: Sempre por aqui. Sempre no Bom Retiro.

Há quanto tempo vocês entregam panfletos?
AC: Eu, há dois anos e meio.
J, P e T: Há três meses.

Só lançamentos imobiliários?
J: Só.

Vocês estudam?
T: Não.
P: Tou terminando o segundo este ano.
J: Também terminando o segundo.
AC: Tou terminando o terceiro.


Esse trabalho é divertido ou é chato?
J: É cansativo, mas é divertido.
T, P, J e AC: É.


Eu reparei que enquanto vocês trabalham, fazem a maior festa, mostram a maior alegria.
AC: O jeito é trabalhar alegre.

Muita gente não pega o panfleto, não é?
P: Tem muita gente que não pega, mas tem muita gente que é simpática.

Qual o horário de trabalho?
AC: Das dez às seis, agora, que é horário de verão.

Trabalham só fim de semana?
AC: É, só no sábado e no domingo.

Carteira assinada?
J: Ah! Jamais.

E quanto vocês ganham?
AC: Vinte reais no fim de semana, doze reais no meio da semana.

Dão ajuda para o almoço?
T, P, J e AC: Não!
T: Vinte reais livres. Eles te trazem, te levam, e só.


Se querem ir no banheiro, como vocês fazem?
P: A gente vai. Quando tem próximo, a gente vai.

Próximo daqui, onde tem?
T: Tem no estacionamento, no bar, tem no restaurante.

Então tem lugar em que não há um banheiro próximo?
T: Tem lugar que é longe.

E aí? Segura a vontade o dia inteiro?
P: Não vai, só que é que é longe.

E água? Dão água para vocês?
P: Eles não dão água.
P: A água que a gente tem, a gente traz de casa.

Se vocês não trouxerem água de casa, ficam sem água?
AC: Pode ser que alguém dê em um bar. Às vezes os marreteiros...
J: Tem muito lugar que o pessoal não dá.
P: Aqui mesmo. Tem um bar que para gente poder usar o banheiro, a mulher cobra um real.


Vocês ficam trabalhando no meio dos carros. Já tomaram algum susto?
AC: Já. Eu fui atropelada. Moto. Machuquei o pé, engessei.

O que vocês esperam do futuro?
T: Trabalhar e ganhar bem.
AC: Estudar.
J: Eu quero ser gerente.
P: Eu não quero ser gerente. Eu quero ser dona. Eu quero que trabalhem pra mim, não eu trabalhar pra ninguém.


Fiz algumas fotos das moças, que até coreografia fizeram. O ensaio fotográfico acabou de repente: o supervisor chegou com a condução, uma velha Kombi que as deixaria no Itaim Paulista, bairro a vinte e cinco quilômetros dali. Eu me despedi das simpáticas garotas com a certeza de que não mais deixarei de abrir o vidro do carro nos semáforos para pegar os tais folhetos das imobiliárias.