28.5.07

VERÔNICA

Após uma decadência que perdurou décadas, a rua do Comércio ostenta iluminação por lampiões estilizados, piso de paralelepípedos e tráfego de bondes. Graças aos incentivos fiscais oferecidos pela prefeitura de Santos, muitos dos velhos casarões foram restaurados e hoje são ocupados por comércio e serviços. Persistem ainda alguns pardieiros habitados por gente muito pobre, além de várias construções em ruínas. Foi nesse cenário em que a vi: apesar do frio e da atadura em um dos joelhos, dava passos rápidos, e o tempo inteiro cantarolava uma canção que eu não conhecia.

V&I: Que música você está cantando?
Ela: É um hino da Igreja Universal do Reino de Deus.

V&I: Você freqüenta essa igreja?
Ela: Não, a minha mãe que é de lá. Às vezes eu também vou. Você já foi lá?

V&I: Não, eu nunca fui.
Ela: Você devia ir. É legal!

V&I: Qual o seu nome?
Ela: Verônica.

V&I: O que você faz da vida?
Verônica: Eu sou casada, mas saí de casa. O meu marido me batia... Aí eu saí de casa com meu filho de oito meses.

V&I: E onde você está morando?
Verônica: Peguei vaga nesse hotel. [Aponta para um hotel decadente, a fachada despedaçada.]

V&I: Você trabalha?
Verônica: Não, agora eu estou parada.

V&I: E o que você fazia?
Verônica: Eu era encarregada de recicragem. [Sabe que falou errado e tenta consertar.] Re-ci-cra-gem... Não adianta, eu não consigo falar.

V&I: Tenta de novo, bem devagar: re-ci-cla-gem.
Verônica: Não, eu não consigo. Desde pequena, na escola...

V&I: Você é do interior?
Verônica: Não, sou daqui de Santos mesmo.

V&I: É que você tem um sotaque meio caipira... Não parece santista.
Verônica: Eu sou daqui. Só não consigo falar algumas palavras...

V&I: Você está procurando emprego?
Verônica: Estou, mas está difícil porque eu estudei pouco.

V&I: Até que série você estudou?
Verônica: Só até a quinta série. Por isso fica difícil conseguir trabalho.

V&I: O que o seu marido faz?
Verônica: Ele é frentista.

V&I: Por quanto tempo você ficou casada?
Verônica: Esse é meu segundo casamento. O primeiro durou quatro anos; esse, três anos. O problema é que ele bebe e depois quer bater... Quem não sabe beber não pode beber.

V&I: E você teve esse filho com ele.
Verônica: Isso, esse de oito meses. E tenho um outro do primeiro casamento, está com dezesseis anos.

V&I: Quantos anos você tem?
Verônica: Trinta, quase trinta e um.

V&I: Parece que tem menos. Você casou nova.
Verônica: É, casei nova.

V&I: E como você está se virando sem trabalho?
Verônica: Eu peço ajuda às pessoas. Hoje eu já consegui dinheiro para o leite em pó do Guilherme. [Mostra na mão um punhado de moedas e de notas amassadas.] Estou indo comprar. Preciso agora arrumar dinheiro pra vaga, vence amanhã.

V&I: Quanto custa a vaga?
Verônica: Doze reais por dia.

V&I: Quanto dura uma lata de leite?
Custa sete e oitenta e dura três dias. Eu misturo como maisena pra render mais.

V&I: Quantas mamadeiras por dia?
Verônica: [Parou fazer as contas antes de responder.] Nove.

V&I: Você não está mais amamentando?
Verônica: Tive que parar logo. Eu tive pneumonia...

V&I: Teve pneumonia e teve que parar por causa dos antibióticos.
Verônica: Isso mesmo.

Verônica parou de falar por um instante e olhou na direção da esquina. Por engano, pensou ter visto o bebê acompanhado do filho mais velho. Disse que precisava ir, pois ainda ia comprar leite para o Gilherme. Antes de me despedir, fiz menção ao futuro; Verônica, sorridente, respondeu que todos os dias precisava conseguir o dinheiro para dar de comer ao filho, e que até agora tem conseguido. Pedi para fotografá-la, fiz as fotos e nos despedimos. Quando ela saiu, não mais cantava, mas nem por isso parecia menos feliz do que antes de nossa conversa.

21.5.07

IVANA

As três mulheres desciam a avenida Brigadeiro Luís Antônio apressadas. A luz da tarde de domingo ressaltava o cuidado delas com as roupas, com a maquiagem, com os adereços. Abordei uma delas quando as outras duas já subiam as escadas do Cartola Club, um dos mais famosos salões de baile de São Paulo.

Qual é o seu nome?
Ivana.

V&I: Pelo visto, hoje é dia de festa. Você sempre sai para dançar?

Ivana: Sempre. Todos os domingos e todas as sextas-feiras, com elas [aponta escada acima].

V&I: Elas são amigas, parentes?

Ivana: Uma é minha filha, a outra é minha amiga.

V&I: Que ritmos você mais gosta de dançar?
Ivana: Adoro bolero, samba...

V&I: Você dança há muito tempo?
Ivana: Ah, já há uns vinte anos.

V&I: E como você aprendeu a dançar?
Ivana: Sozinha!

V&I: Mas como que se aprende a dançar sozinho?
Ivana: Os parceiros ensinam!

V&I: Você tem parceiro fixo?
Ivana: Não. A cada vez que a gente vem, dançamos com pessoas diferentes. Sempre tem gente nova.

V&I: Funciona à moda antiga? É o cavalheiro quem tira a dama para dançar?
Ivana: Exatamente. Ainda é assim.

V&I: Bolero é sua especialidade?
Ivana: Sim. E samba também.

V&I: Algum ritmo mais difícil de dançar, alguma coisa que você tentou e não conseguiu?
Ivana: Tango. [Faz uma pausa e parece suspirar.] Tango é uma arte...

O baile já tinha começado e mesmo da calçada onde eu me encontrava a música era audível. Não apenas minha interlocutora, mas também as pessoas que chegavam mostravam-se nitidamente apressadas, ansiosas por dançar; por isso, não me estiquei em mais perguntas. Pedi para fotografá-la; ela chamou a filha para as posar com ela e enfim Ivana pôde subir as escadas para entrar no baile. E eu, que sou completamente desconjuntado quando tento dançar, fiquei ali pensando que, inegavelmente, o tango é uma arte.

***

Esta foi a primeira entrevista que fiz baseada não no acaso de encontrar as pessoas nas ruas, mas sim em uma pauta pré-definida. A idéia de conversar com frequentadores dos salões de baile foi da Maray, do Che Caribe. Em breve, pretendo voltar ao Cartola Club no final do baile, um horário com dançarinos menos descansados e com mais tempo para o exercício da prosa.

14.5.07

LUIZ CARLOS

Noite de domingo. Estava regulando a câmera para devolvê-la ao topo do tripé, instalado em uma iluminada rua do Centro de São Paulo. Olho para trás e a menos de três metros de distância vejo aquele homem: roupas muito gastas - calça de oncinha, camisa de veludo, jaqueta encardida - dispostos em camadas, à la Falcão; olhos protegidos por um estranho óculos no estilo homem-mosca; um notável mau cheiro (por certo um morador de rua sem muitas oportunidades para o banho). Ele parecia em transe enquanto olhava para o próprio reflexo no vidro espelhado de um carro estacionado, transe este interrompido pelo meu chamado.

Vida & Imagens: Ei, vem cá.
[Ele levantou os óculos e lentamente se aproximou de mim. Parou na minha frente, o mau cheiro ainda mais forte; só então notei que seus óculos eram, na verdade, um pedaço de lanterna de carro.]

V&I: Posso fotografar você?
[O homem nada falou, mas autorizou a foto com um gesto de cabeça e postou-se à minha frente.]

V&I: Qual é o seu nome?
Ele: Luiz Carlos de Oliveira, aventurado na galática, fazendo o Sol de Terra.

V&I: Luiz Carlos, posso entrevistar você?
[Desta vez, o gesto foi de negação. Luiz Carlos virou-se e saiu andando devagar, até sumir em meio à multidão.]

Horas depois, ao transcrever as raras palavras de Luiz Carlos, a dúvida: "fazendo o Sol de Terra" comporta vários sentidos. Acabei concluindo que, na frase, "Terra" é o planeta, e não a matéria, o barro. Pura filosofia, ainda que vinda de alguém com evidente perturbação mental.