22.12.06

VALQUÍRIA


Depois de um dia estafante de trabalho, saí com a câmera fotográfica rumo ao centro de São Paulo. Estava equipado: lentes, cabo disparador, tripé. Eu fazia algumas fotos no Pátio do Colégio, a objetiva apontando para o prédio do Banespa, quando uma pequena e bonita menina veio olhar o que eu estava fazendo.




Qual é o seu nome?
Valquíria.

V&I: Quantos anos você tem?
Valquíria: Oito anos.

V&I: Oito anos? Mas não parece!
Valquíria: Todo mundo pensa que eu tenho seis. Mas eu já estou até estudando de tarde.

V&I: É que você é pequenininha. Você mora por aqui?
Valquíria: Eu moro na rua... [Ela ia continuar, mas de repente ficou muda.]

V&I: Entendi. Sua mãe falou para você não dizer onde mora para estranhos. Ela está certa. [Valquíria olha para mim e concorda.]

V&I: O que você quer ser quando crescer?
Valquíria: Quero ser que nem você [aponta para minha câmera]. Posso ver as fotos?


[Mostrei então as fotos que fiz do Pátio do Colégio e do prédio do Banespa iluminados com decoração de Natal.]


Valquíria: Tira uma foto minha?
V&I: Tiro, sim. Deixa só eu trocar a lente.

Valquíria: O que é lente?
V&I: É esse vidro aqui. São os olhos da máquina fotográfica.


[Depois de trocar a lente, comecei a fotografar a menina.]


V&I: O que você gosta de fazer?
Valquíria: Gosto de jogar bola. Tira a minha foto jogando bola?

V&I: Eu tiro, sim. Diz uma coisa: só gosta de brincar de jogar bola?
Valquíria: Não. Gosto de Barbie também.




Fiz algumas fotos de Valquíria; logo ela chamou seus amigos para mais fotos. Fiquei cercado por crianças, todas curiosas em ver as próprias imagens no visor da câmera. Muito de repente, foram todas embora com muita pressa. Talvez tenham se dado conta do horário, pois já passava das dez da noite ali no Pátio do Colégio. Hora das crianças estarem em casa... Talvez de olho em alguma novela da Globo!

10.12.06

GERALDA

Voltava sem pressa para São Paulo pela Via Dutra quando avistei a monumental Basílica Nova, na cidade de Aparecida. Resolvi visitá-la e tirar algumas fotos. Fiz alguns cliques da missa que acontecia no interior da gigantesca construção; já estava de saída quando uma senhora idosa, caprichosamente vestida de branco, deixou o culto e perguntou se eu poderia fotografá-la. “É pra já”, disse eu. “A senhora daria uma entrevista para mim?” Ela aceitou no ato. E foi assim que inesperadamente consegui a entrevista que segue.


RM: Qual o nome da senhora?
Geralda.

RM: De onde a senhora é?
Geralda: Eu venho de Maringá.

RM: Quantos quilômetros daqui?
Geralda: Eu não sei, não.

RM: Quando a senhora saiu de casa, e quando a senhora chegou aqui?
Geralda: Saí de lá às seis (da manhã). O ônibus teve um problema, teve que parar... Cheguei aqui há uma hora (ou seja, às seis e meia da tarde).

RM: E quando vocês vão embora?
Geralda: Na volta a gente vai passar por São Paulo, pra ver a missa das cinco do padre Marcelo.

RM: Cinco horas da manhã?
Geralda: Cinco horas da tarde. Depois da missa do padre Marcelo, a gente sai de São Paulo e vai embora pra casa.

RM: Estou vendo a senhora com essa roupa branca, bonita, trabalhada. Está pagando uma promessa?
Geralda: É.

RM: Eu posso saber o motivo dessa promessa?
Geralda: É que eu fiquei quarenta horas desacordada.

RM: Algum acidente?
Geralda: Não, doença.

RM: Quando foi isso?
Geralda: Há mais de cinquenta anos. Os outros prometeram por mim, fizeram a promessa.

RM: Pediram à Nossa Senhora Aparecida.
Geralda: Isso. E hoje eu vim pagar a promessa.

RM: Quantos anos a senhora tem?
Geralda: Eu tenho oitenta anos, mas na certidão eu tenho cinqüenta e três.

RM: Tem marido, filhos?
Geralda: Só tenho duas filhas, duas netas e dois bisnetos.

RM: Vamos tirar as fotos?
Vamos.


Eu sabia que Geralda não queria perder a missa; por isso, fiz as fotos com rapidez, em uma das entradas da Basílica Nova. Depois peguei o endereço dela no Paraná e fiquei de enviar as fotos nesta semana. Insistiu em pagar pelas cópias, mas recusei. Geralda se despediu de mim com um abraço e voltou, feliz que só, para o interior da igreja.

6.12.06

DANIEL

Eu estava com minha Canon fotografando transeuntes no Viaduto do Chá quando ele - um homem sério, sisudo, fala mansa, pasta de papéis nas mãos - timidamente se aproximou, dizendo que ia para Campinas atrás de um emprego. Convidei-o para uma entrevista e ele logo topou.

RM: Qual é o seu nome?
Meu nome é Daniel.

RM: Daniel, o que você está fazendo aqui no Viaduto do Chá no domingo de tarde?
Daniel: Eu estou aqui desde ontem atrás das minhas documentações. Documentação necessária para um emprego anunciado. Já providenciei, graças a Deus.

RM: É documentação para trabalhar?
Daniel: Pra trabalho, exatamente.

RM: O que você faz?
Daniel: Eu sou armador de ferragens.

RM: O que faz um armador de ferragens?
Daniel: O armador de ferragens lida com vários tipos de trabalho, de serviço, como pontilhão, ponte...

RM: Isso na construção civil.
Daniel: Construção civil. Prédio, residência, casa, Cohab, essas coisas. Diversos tipos de serviço.

RM: Você mora aqui em São Paulo?
Daniel: Moro. Estou morando agora atualmente aqui na Baixada do Glicério.

RM: Você nasceu aqui?
Daniel: Nasci em Paranavaí, mas criado em São Paulo.

RM: Onde fica Paranavaí?
Paranavaí é no Paraná, depois de Londrina, Maringá. Norte do Paraná.

RM: Você está em São Paulo há quantos anos?
Daniel: Estou em São Paulo há 17 anos.

RM: Você gosta daqui?
Daniel: Olha, gostar, a gente tem que dizer que não. Por causa do transtorno, do dia-a-dia, essa cidade, a correria. Mas em termos de serviço, a coisa aqui em São Paulo é melhor do que em certos lugares aí fora. Tem bastante trabalho. Estou passando necessidade, dificuldade, mas graças a Deus estou tentando normalizar, recolocar as coisas no lugar.

RM: Você é casado?
Daniel: Sou casado.

RM: Tem filhos?
Daniel: Tenho um filho mas não está comigo. Está no Paraná.

RM: Quantos anos de casado?
Daniel: Vai fazer 17 anos.

RM: Você está com quantos anos?
Daniel: Eu estou com 42.

RM: Você aparenta menos.
Daniel: Sim, aparento, muitos falam. Mas creio que é só a fisionomia, mesmo.

RM: O que você espera do futuro, de 2007?
Daniel: Eu pretendo agora trabalhar, recomeçar a vida, recolocar as coisas no lugar. Recomeçar de novo, se tudo correr bem. E serviço, não é? Trabalho.

RM: A sua mulher está aqui ou está no Paraná?
Daniel: Está no Paraná.

RM: Você vai trazê-la?
Daniel: Pretendo, futuramente, mais para frente.

RM: Perfeito, então. Obrigado pela entrevista e tudo de bom.
Daniel: Ok.

Apertei a mão de Daniel e ele se foi, passo miúdo e rápido, carregando sua pastinha de plástico transparente cheia de documentos. Oxalá ele consiga o emprego e traga a mulher que ficou no Paraná.

23.11.06

"ZÉ"

Dez e meia da noite de quarta. Eu mal parei o carro no Pátio do Colégio e já fui recebido pelo cara. Com forte hálito de álcool, foi lme estendendo a mão (suja e grudenta) e começou a puxar conversa: “Chico Buarque vai morrer.” Como eu estava sem o gravador, puxei de memória a maior parte da prosa.

RM: Por que o Chico Buarque vai morrer?
Zé: O Chico Buarque fuma e bebe, vai morrer.
RM: Mas só porque fuma e bebe vai morrer?
Zé: Ele tem aquela mulher gostosa, a Marieta Severo.
RM: A mulherada toda dá em cima do Chico Buarque.
Zé: Você é amigo do Chico Buarque?
RM: Não, mas eu gosto dele.
Zé: Chico Buarque vai morrer. Ele fuma e bebe.
(...)
RM: Qual é o seu nome?
Zé: Por que você quer saber meu nome?
RM: Porque eu gosto de saber o nome das pessoas com quem eu estou falando. Meu nome é Ricardo, e o seu?
Zé: Por que você quer saber meu nome?
RM: Se você não quer falar seu nome, minta. Inventa um nome.
Zé: Eu nunca minto.
RM: Então, vou fingir que você é o Zé.
Zé: Pra que você quer saber meu nome?
(...)
RM: De onde você é?
Zé: Você tem que adivinhar de onde eu sou.
RM: Você tem sotaque meio de carioca.
Zé: Não sou do Rio. Você é brasileiro?
RM: Sou.
Zé: Então, adivinha de que estado eu sou.
RM: Sou bom de geografia. Vou começar do sul: Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Minhas Gerais, Espírito Santo, Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará...
Zé: Nenhum deles. Você não sabe de onde eu sou.
RM: Mas eu não falei todos os estados...
Zé: Você não sabe todos os estados. São 27 estados.
RM: Então faz assim: se eu falar todos os 27 estados, você deixa eu tirar uma foto sua?
Zé: Se fosse falar eu deixo.
(E comecei a falar todos, contando nos dedos, de 1 a 27. 26 estados mais o Distrito Federal.)
RM: Pronto. De onde você é?
Zé: De Tocantins.
RM: Mas quando você nasceu, ainda não existia Tocantins. Era Goiás.
Zé: É.
RM: Palmas nem existia. De onde você é? De perto do rio Araguaia?
Zé: Rapaz, eu quase me afoguei no Araguaia.
RM: Você está há quanto tempo em São Paulo?
Zé: Há dez anos.
RM: O que você faz?
Zé: Eu não faço nada. Eu moro na rua.
(...)
RM: Agora posso tirar a foto?
Zé: Você me dá cinqüenta centavos pra completar meu almoço?
RM: Olha. Dois reais.
Zé: É pro almoço, não é pra janta, não. Eu não almocei hoje ainda.
RM: Posso agora tirar a foto?
Zé: Pode ser junto do sino?
(...)
Zé: Qual a capital de Roma?
RM: Roma não tem capital. Roma que é capital da Itália.
Zé: Não... Você não sabe a capital de Roma.
(...)
RM: Qual a sua religião?
Zé: Eu sou católico apostólico romano.
(...)
Zé: O Papa não mente. O Papa é santo. Você é contra o Papa?
RM: O Papa não é santo.
Zé: Como que o Papa não é santo? O Papa não mente!
(...)
Zé: O que você vai fazer com minha foto? Vai pôr no jornal?
RM: Claro que não. Eu nem sei seu nome.
Zé: Eu te mato, hein?
(...)
Zé: E se você estivesse na Faixa de Gaza?
RM: Eu não vou para a Faixa de Gaza.
Zé: Levar um tiro na Faixa de Gaza. Tum!...

O homem vez por outra puxava a minha mão para um aperto. De modo algum deu o nome, e por isso batizei esse John Doe tupiniquim como “Zé”, “Zé Ninguém”. E Zé começava a repetir seus assuntos, quase fetiches: Chico Buarque, o Papa, a faixa de Gaza, religião. Quando foi embora, Zé falava novamente sobre o Chico. Um policial, que acompanhava a conversa a alguns metros de distância, me indagou quando eu saía do Pátio: “Ele é seu amigo?”

15.11.06

JOSÉ

Tarde de domingo. Parei em frente ao Parque da Luz para fotografar a torre da estação ferroviária, belíssimo prédio que por obra de cuidadosa restauração mostra-se novo em folha. Um senhor que vendia sorvetes em um carrinho da Kibon aproximou-se e mostrou-se interessado em meus cliques. Conversamos um pouco, saboreei um Cornetto de doce-de-leite e convidei-o para entrevista e fotos.

Qual é o seu nome?
José.

O senhor é daqui de São Paulo?
J: Sou daqui de São Paulo.

O senhor estava me falando que morou em São Vicente.
J: Morei em São Vicente.

Fora São Paulo e São Vicente, morou em algum outro lugar?
J: Não, aí é só aqui mesmo.

Por quanto tempo o senhor morou lá?
J: Cinco anos.

O senhor gosta mais de lá ou daqui?
J: Olha, lá é muito legal, mas o meu lugar mesmo é aqui.

Em que bairro o senhor mora?
J: Penha.

O senhor vem da Penha até aqui com o carrinho?
J: Não, o carrinho vem do Brás.

Então o senhor nasceu na Penha e mora na Penha até hoje.
J: Não, eu nasci em Cafelândia. Eu sou cafelandense.

O senhor veio para São Paulo com quantos anos?
J: Vim pra São Paulo já velho, eu morava no Paraná.

Cafelândia é no Paraná?
J: Não, Cafelândia é no estado de São Paulo.

O que o senhor fazia em Cafelândia?
J: Nem conheço Cafelândia. Eu fui criado lá pro Mato Grosso, lá pra Dourados.

O senhor conhece o Brasil todo, então!
J: É. Mato Grosso eu conheço. Eu conheço o Paraná. Eu estive em Maringá, trabalhei em Maringá, me casei em Maringá.

Ma o senhor gosta mesmo é de São Paulo.
J: É.

O senhor tem filhos?
J: Tenho.

Quantos filhos?
J: Sou pai de cinco filhos. Tem três vivos, todos criados.

Qual a idade deles? Todos grandes?
J: Ah... Tem um de 38 anos, uma menina tem 30 e a outra tem 25. Tenho dois, não... Três netos. Um neto com 17 anos, uma neta com 12 e a outra vai fazer 9.

Quantos anos o senhor tem?
J: Eu? 75.

Não parece. O senhor está bem.
J: Não parece, não é? Muita gente fala isso.

Pela sua experiência, me diga: qual a melhor coisa da vida?
J: Olha... Que a gente tenha saúde em primeiro lugar. Pra isso, tem que gostar de comer, na hora certa a gente dormir, e também levantar cedo pra trabalhar.

Por sinal, a tarde estava no fim. O senhor José fechou o guarda-sol colorido, despediu-se e saiu empurrando o carrinho de sorvetes. Três quartos de século de existência, mas que pique! Voltarei lá em outro domingo, para mostrar as fotos que fiz e também para tomar mais sorvete, sempre acompanhado de saborosa prosa.

6.11.06

TATIANA, PALOMA, JULIANA e ANA CARLA

O sinal vermelho, eu parei. Vidro aberto, logo me ofereceram o folheto para um lançamento imobiliário no Bom Retiro. “Posso tirar uma foto sua?” A menina disse que sim, e logo chamou a colega de trabalho para que posassem juntas. Luz verde, eu agradeci e saí. Acabei dando a volta no quarteirão e parando no semáforo novamente. “Você me dá uma entrevista?” Ela explicou que o supervisor estava por perto, mas que o expediente acabaria em dez minutos. Resolvi estacionar o carro e esperar. Acabei falando não apenas com essa garota, mas também com outras três que cobriam o cruzamento, alinhadas aos pontos cardeais.

Quais os seus nomes?
Tatiana... Paloma... Juliana... Ana Carla.

Quantos anos vocês tem?
Tatiana: Vinte e um.
Paloma: Dezoito.
Juliana: Dezoito.
Ana Carla: Dezoito.


Vocês moram por aqui ou moram longe?
T: Longe, Itaim Paulista.

Todas no Itaim Paulista?
T, P, J e AC: É.

A cada fim de semana vocês trabalham em um lugar diferente?
AC: Sempre por aqui. Sempre no Bom Retiro.

Há quanto tempo vocês entregam panfletos?
AC: Eu, há dois anos e meio.
J, P e T: Há três meses.

Só lançamentos imobiliários?
J: Só.

Vocês estudam?
T: Não.
P: Tou terminando o segundo este ano.
J: Também terminando o segundo.
AC: Tou terminando o terceiro.


Esse trabalho é divertido ou é chato?
J: É cansativo, mas é divertido.
T, P, J e AC: É.


Eu reparei que enquanto vocês trabalham, fazem a maior festa, mostram a maior alegria.
AC: O jeito é trabalhar alegre.

Muita gente não pega o panfleto, não é?
P: Tem muita gente que não pega, mas tem muita gente que é simpática.

Qual o horário de trabalho?
AC: Das dez às seis, agora, que é horário de verão.

Trabalham só fim de semana?
AC: É, só no sábado e no domingo.

Carteira assinada?
J: Ah! Jamais.

E quanto vocês ganham?
AC: Vinte reais no fim de semana, doze reais no meio da semana.

Dão ajuda para o almoço?
T, P, J e AC: Não!
T: Vinte reais livres. Eles te trazem, te levam, e só.


Se querem ir no banheiro, como vocês fazem?
P: A gente vai. Quando tem próximo, a gente vai.

Próximo daqui, onde tem?
T: Tem no estacionamento, no bar, tem no restaurante.

Então tem lugar em que não há um banheiro próximo?
T: Tem lugar que é longe.

E aí? Segura a vontade o dia inteiro?
P: Não vai, só que é que é longe.

E água? Dão água para vocês?
P: Eles não dão água.
P: A água que a gente tem, a gente traz de casa.

Se vocês não trouxerem água de casa, ficam sem água?
AC: Pode ser que alguém dê em um bar. Às vezes os marreteiros...
J: Tem muito lugar que o pessoal não dá.
P: Aqui mesmo. Tem um bar que para gente poder usar o banheiro, a mulher cobra um real.


Vocês ficam trabalhando no meio dos carros. Já tomaram algum susto?
AC: Já. Eu fui atropelada. Moto. Machuquei o pé, engessei.

O que vocês esperam do futuro?
T: Trabalhar e ganhar bem.
AC: Estudar.
J: Eu quero ser gerente.
P: Eu não quero ser gerente. Eu quero ser dona. Eu quero que trabalhem pra mim, não eu trabalhar pra ninguém.


Fiz algumas fotos das moças, que até coreografia fizeram. O ensaio fotográfico acabou de repente: o supervisor chegou com a condução, uma velha Kombi que as deixaria no Itaim Paulista, bairro a vinte e cinco quilômetros dali. Eu me despedi das simpáticas garotas com a certeza de que não mais deixarei de abrir o vidro do carro nos semáforos para pegar os tais folhetos das imobiliárias.

29.10.06

LUIZ

A rua José Paulino fica no Bom Retiro e concentra boa parte dos atacados de roupas de São Paulo. Lojas já fechadas, o movimento agora não é de compradores, mas sim de funcionários das lojas voltando para casa após o expediente. Eu fotografava duas transeuntes que faziam pose para mim quando o cara surgiu: camiseta da Cavalera, bermudinha, colar de contas, cigarro entre os dedos, exigiu que também fosse fotografado. Não apenas o cliquei, mas também conversamos.

Qual o seu nome?
Luiz.
Luiz, o que você está fazendo na José Paulino no fim da tarde de sábado?
Estou chegando agora do serviço e estou à procura de uma pessoa muito interessante, que interesse a mim também.
Como é essa pessoa que você está procurando?
Ah, uma morena, um metro sessenta e oito, os olhos castanhos igual os meus, de preferência.
Você sabe até a altura certinha. Sabe exatamente o que quer!
Com certeza, véio.
Morena de um e sessenta e oito. E o que mais? Magra, gorda?
Não, não, não. Eu não tenho preconceito, não.
Pode ser gordinha?
Pode ser, cara.
Bom que seja liberada?
Com certeza.
O que mais você espera? O que você gosta de fazer?
Tudo, mano. Completo. Eu sou um cara louco.
O que é ser louco?
Louco é o seguinte: entre quatro paredes, fazer tudo aquilo que a mulher gosta e eu também, tá entendendo? E aí saiu de quatro paredes, já era: ninguém viu nada, ninguém sabe de nada.
Muito discretamente.
Exatamente.
E fora sexo, o que você gosta de fazer?
Trabalhar e tomar uma cervejinha e um Contini.
Você trabalha com o quê?
Eu sou pintor, entendeu? Pintor residencial, predial e tal.
Então você rala pra caramba, mas no fim de semana fica procurando essa morena.
Com certeza, e até hoje eu não achei.
Ah, mas você acha outras por aí...
Ah, mas depende... Mas só que nunca fez o meu hobby.
Nunca achou uma que fosse exatamente o que você queria?
Não, não, não. Ainda não.
Nunca?
Nunca, nunca, nunca. Encontrei várias, mas não encontrei ainda a que eu quero mesmo.
Aquela história: enquanto a gente não acha a mulher certa, a gente se diverte com as erradas.
Ah ah! Mas é por aí mesmo, entendeu? Só que eu prefiro a pessoa certa.
E hoje? Ainda não achou uma morena pra hoje?
Até agora, até o momento, eu tou sem ninguém.
Nem loira, nem nada.
Nem loira nem morena nem escura nem nada.
E onde você vai procurar essa mulher hoje?
Ah, Não sei. Deus sabe.
Não tem idéia ainda?
Não, não tem.
Se alguma mulher vir essa entrevista e quiser falar contigo, como ela faz? Como ela te acha?
Então, é aí que está o problema, tá entendendo? Porque o meu celular me roubaram dentro do metrô. É real. Agora, como é que eu faço? Ela tem que deixar o telefone com você, se você deixar o seu comigo. Aí ela entra em contato com você.
Então a gente faz o seguinte. Posso colocar a entrevista na internet?
Com certeza. E eu dei minhas características também. Se alguém quiser...
Então eu deixo contigo o meu cartão e você me liga. Se alguém me ligar, eu encaminho pra você.
Certeza, lógico.
Posso tirar mais fotos?
Com certeza.

E fiz mais umas poucas fotos do Luiz, que saiu todo feliz na direção do Parque da Luz. Ficou de ligar para mim em dez dias, para que eu repasse os contatos de eventuais pretendentes que tenham visto essa entrevista. De preferência morenas, de um e sessenta e oito. Se forem liberadas, tanto melhor. Alguém se habilita?

22.10.06

INGRID

Três da tarde de um domingo de céu lindo e sol escaldante. As ruas do centro da cidade, próximas ao porto, desertas. A moça, vestida com um surrado top laranja e minissaia, aproximou-se enquanto eu fotografava um prédio histórico e ficou observando eu regular a câmera e escolher enquadramentos. Reclamei do calor e puxei papo. Logo começamos a entrevista.


Qual o seu nome?
Ingrid.
Quantos anos você tem?
Eu tenho vinte e um.
O que você gosta de fazer?
Ah... Eu faço programa.
Mas programa é trabalho, não é?
É, lógico.
E o que você gosta de fazer, quando não está fazendo programa?
Gosto de andar, passear na praia.
Qual praia?
A da Biquinha.
Você tem filhos?
Não.
Já casou alguma vez?
Não.
Teve algum namoro firme?
Já.
Está sozinha?
Tou. O meu namorado morreu.
Morreu como?
Acidente de moto.
Ingrid, me diz uma coisa: o que você espera do futuro?
Espero sair dessa vida.
Você está há quanto tempo nessa vida?
Seis anos.
Então, quando você começou, você era menor de idade?
Era.
E quando você sair dessa vida, o que você pretende fazer?
Ah... Meu sonho era ter minha casa, meu marido.
Você mora por aqui?
Moro na saída da cidade.
Você vem a pé pra cá?
É.
Todo dia? De segunda a segunda?
É.
Fala do seu trabalho. Tem vez que é legal, tem vez que não é legal?
Nem todo dia é bom, né? Mas nem todo dia a gente se fode.
Mas tem dia que é bom, não é?
Tem dia que é.
Espero que hoje seja um dia de sorte.
Obrigada.


Tempo é dinheiro: abreviei a conversa porque notei que Ingrid se inquietava sempre que um caminhão, invariavelmente conduzido por possível cliente, passava por nós. Óbvio que eu não queria vê-la perder programas por estar de lero comigo. E programas, leitores, programas valem dinheiro, e por tabela a subsistência. É um dinheiro suado, esse - tanto mais numa infernal tarde de domingo, sol de rachar.

8.10.06

CELESTINO

O homem usava enormes óculos estilo caçador, sem lentes, e nariz de palhaço. Aproximou-se das pessoas que esperavam o ônibus em frente ao Pátio do Colégio, bem ali onde São Paulo um dia começou. Uma policial viu e achou por bem afugentá-lo para os lados da Quinze de Novembro. Afinal, não está certo importunar quem está quietinho, sentado no banco sob a cobertura metálica, esperando o busão sabe lá Deus para onde. O homem reclamou, peitou a policial, mas logo se conformou e atravessou a rua. Quando fui falar com Celestino, ele pedia a um jardineiro uma mudinha de planta para dar de presente à policial que momentos antes o enxotara. Aceitou ser entrevistado, avisando de cara que era carioca, que gostava de mulher e que votou no Lula.

Qual o seu nome?
Celestino.
Onde você nasceu, Celestino?
Rio de Janeiro.
Como você veio parar em São Paulo?
Minha mãe me trouxe pra cá com dois anos.
Então você sempre morou em São Paulo.
É, eu sou paulistano, praticamente.
E o que você faz da vida?
Rapaz... Eu faço o que a vida faz de mim.
O que você gosta de fazer, Celestino?
Eu gosto de dançar, de mulher e de beber.
Dançar o que? Samba?
Rock.
Rock? Você é roqueiro?
Opa! Eu tenho 52 anos. Eu sou um dinossauro do rock, né? Rolling Stones.
Além dos Rolling Stones, de quem mais você gosta, Celestino?
Ângela Maria.
Mas Ângela Maria não é rock. Ângela Maria é parceira do Cauby.
Eu também adoro Cauby Peixoto.
Cauby é ótimo. Eu fui ver um show dele no Bar Brahma. O cara continua em forma.
Em forma!
Celestino, você trabalha?
Não, não trabalho.
Está parado.
Eu tou. Aqui em São Paulo, a pessoa com 50 anos não consegue emprego.
É verdade.
Ainda desdentado, não consegue.
O que você fazia antes?
Era protético. Fazia dentes. Também era vendedor de sapatos na rua Augusta. Em 72, trabalhei no supermercado Eldorado. Naquela época... Agora, tou com 52 anos.
Você nunca casou?
Eu fui amigado. Tenho um filho, ele tá lá no Paraná.
Você falou do Lula. Você gostou dele?
Eu voto no Lula. Lula lá e eu aqui!
Tem eleição de novo daqui a 3 semanas.
Ainda bem que eu vou votar de novo. Eu vou votar de novo e ele vai ganhar.
Agora você vai dar essa plantinha pra PM?
Ahn.
Posso tirar uma foto sua?
Pode. Mas eu tou disfarçado... Eu sou agente da Uncle.
Ah, me conta outra coisa: porque você está com esse nariz de palhaço?
Porque eu votei no Lula...
Alguém te deu o nariz de palhaço quando você foi votar no Lula?
Não. Eu compro e vendo.
Na 25 de Março?
Na 25... Como é que você sabe?
A 25 é logo ali. Todo mundo sabe. Mas diz uma coisa. Onde você fica? Está sempre por aqui?
Às vezes. Já dormi ali naquela rua. Naquela porta ali.
O que você espera do futuro?
O futuro é o governo. Não é ladrão, não é sanguessuga, não é mensalão.
O futuro é honestidade no país.

Celestino, vou imprimir uma foto para você e espero te ver de novo.
Tá, tudo bem.
Tudo de bom!
Também!

E Celestino atravessou a rua, em direção à base móvel da Polícia Militar, plantinha nas mãos, um presente para a bela PM que policiava o Pátio.